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Defendendo a pátria

 

Não posso negar minha condição de veterano, em matéria de defender as cores do Brasil no estrangeiro. Aliás, pensando bem, não posso negar minha condição de veterano em nada e, se a literatura fosse escola de samba, eu com certeza já estaria integrando a velha guarda. Comecei minhas viagens bem cedo e desde então sou muito requisitado. Não sei bem a razão. Uma vez, há muito tempo, num coquetel em Toronto, estava conversando com o escritor Márcio Souza, então meu companheiro constante de delegação, quando fizemos uma pausa e olhamos em torno.

- Márcio, você já notou que, nesses eventos internacionais, estamos sempre você e eu, aquele poeta peruano, os dois centro-americanos que a gente nunca sabe direito de onde são, o polonês de ar sinistro, aquela mexicana que fala gritando, os três…

- Eu sei – disse ele. – São sempre os mesmos. Aliás, somos sempre os mesmos, eles devem estar dizendo a mesma coisa de nós. Eu tenho uma teoria sobre isso. Nós pertencemos a uma organização secreta, que sempre nos manda a coisas como esta.

- Nós pertencemos a uma organização? Como assim, nunca me falaram nada.

- É porque ela é tão secreta que não dizem nada nem aos próprios membros.

É, deve ser. Aparentemente, Márcio anda meio afastado, porque faz tempo que não o encontro de repente no exterior, como acontecia antes. Talvez um de nós tenha sido transferido de setor, como sempre sem que nos digam nada. Não sei bem, só sei que continuo em atividade e esta é a terceira vez este ano em que sou despachado para um front cultural. Estou agora em um hotel de Bruxelas, catando as teclas de um computadorzinho, as quais, como num filme, se fundem com imagens do passado. Sim, há muito o que lembrar, nesta vida de veterano. Hotéis e hospedagem em geral, por exemplo.

Hoje em dia, a coisa está melhor, mas a vida do pioneiro não é fácil. Sempre muito simpáticos, os anfitriões fazem o melhor que podem para nos agradar. O problema é que eles parecem pensar que nós, os atrasadinhos tropicais, ficaríamos muito gratos por dispormos, por exemplo, de vasos sanitários. Sabe como é, acostumados a viver nos matos e emporcalhar a Amazônia, conhecíamos de ouvir falar esses ambientes de porcelana e ladrilhos, conhecidos como banheiros. Uma vez, em Munique, um alemão muito gentil me levou a um banheiro no corredor e me apresentou triunfantemente uma pia e um vaso sanitário e, aparentemente, preparou-se para fazer uma preleção sobre eles. Temendo que, num acesso de entusiasmo germânico, ele também quisesse demonstrar explicitamente o uso dos modernos utensílios, contei que já conhecia aquilo e, para que ele acreditasse, contei também que já tinha visto semelhantes nos Estados Unidos. Acho que ele acreditou, porque em seguida foi me apresentar aos dois catres onde minha mulher e eu dormiríamos. Sabe como é, novamente. Acostumados a dormir no mato, no meio das jiboias, nós podíamos estranhar aqueles luxos. Até hoje lembro do ar magoado do alemão, quando nós procuramos um hotel com quarto, camas, banheiro exclusivo etc. No mínimo, deve ter-nos achado um par de colonizados culturais, abandonando nossas raízes históricas para adotar hábitos do colonizador.

Outra vez, em Copenhague, nos instalaram bem no centro da zona. Tudo bem, nada de preconceito, mas o quarto não comportava mais que duas pessoas (paradas; se se mexessem, haveria colisões) e ficava meio chato a gente estar voltando para o hotel e ser parado o tempo todo por frequentadores da zona, nos oferecendo tudo o que, imagino eu, uma boa zona dinamarquesa oferece. Em Stuttgart, depois de haver subido quatro enormes lances de escada, carregando malas, deparamos com charmosos aposentos, cuja característica principal era o banheiro: um círculo fechado por uma cortina de plástico transparente, bem no centro do quarto. Devia ser uma experiência emocionante, ver através do plástico o companheiro de quarto cuidando de todos os seus afazeres banheirais. E, sabe como é, somos fortes como gorilas, e fazemos tudo no muque, de maneira que, se quiséssemos, subiríamos aquelas escadas carregando uma mala de trinta quilos em cada mão e mandaríamos rezar uma missa em ação de graças, pelo tão original banheiro.

Conto, enfim, com um vasto repertório de memórias desse tipo, que se misturam difusamente no passado. Quer dizer, nem tão passado assim, como sou lembrado, no hotel de Bruxelas que nos destinaram. Quatro estrelas, coisa fina. Exaustos, depois de praticamente um dia inteiro de viagem, fazemos o registro na recepção. Pronto, será que alguém podia levar aquelas malas, que a viagem havia tornado já tão pesadas, para o nosso quarto?

- Aqui não temos ninguém para levar malas – disse, com um grunhido não tão amistoso, o funcionário da recepção.

Tudo bem, sabe como é, nós somos fortes etc. etc. Subimos, apertou fome, porque a comida no avião parecia ter sido furtada do Zoológico de Lisboa (era TAP e a escolha de comida acabou antes de chegar a nossa vez, de maneira que tivemos que ficar com o que certamente tinha sido selecionado para as hienas, lá no Zoo da terrinha). Não há restaurante no hotel. Tudo bem, então serviço de quarto. Não há serviço de quarto. Então podíamos sair pelas redondezas, para ver se achávamos algo? Podíamos, mas com cuidado, porque a área era mal frequentada. Refizemos as malas para mudar de hotel. Ou pelo menos para uma boa árvore, que lembrasse a nossa casa. Ô vida.

O Globo, 30/10/2011