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Fatos e fotos

 

Muitos, quase todos nós, ficamos chocados com as fotos do cadáver de Kaddafi divulgadas pela mídia mundial.

Antigamente, nas velhas Redações, evitava-se a publicação de fotos impactantes.
 
Em agosto de 1976, era editor de uma revista e tive em mãos a foto de JK após o acidente na estrada, evidente que nem pensei em publicá-la, nem mesmo o Instituto Carlos Éboli, onde a foto foi feita para constituir peça importante do inquérito, distribuiu aquela imagem para o grande o público.

Em outro caso, não idêntico, mas análogo, há tempos, como editor de uma revista ilustrada, recebi de um repórter que trabalhava na minha equipe a foto de uma moça estuprada que foi jogada ao mar no Chapéu dos Pescadores, trecho da avenida que liga o Leblon a São Conrado.

Para todos os efeitos, foi a imagem mais terrível que meus olhos já viram, pois os assassinos da jovem usaram uma garrafa de Coca-Cola para sodomizar a vítima ainda em vida.

Há uma corrente de profissionais da mídia que adota a tese da necessidade de informar tudo o que acontece, o leitor tem o sagrado direito de saber de tudo, nos mínimos detalhes. Mesmo os escabrosos, de péssimo gosto e que em nada contribuem para clarificação de um fato, por mais delituoso que seja.

Mas voltemos ao caso de Kaddafi. Um ditador criminoso que massacrou milhares de adversários e de gente que nem chegava a ser inimiga dele, povo inocente que ele não poupou para se manter no poder por mais de 40 anos.

Merecia o fim que teve, nem por isso a foto de seu cadáver mutilado serviria para confirmar a tese de que o crime, no final das contas, não compensa.

O corpo de Che Guevara também foi fotografado, mas a imagem que resultou de seu cadáver teve efeito contrário, muitos viram em seu semblante sereno, os olhos entreabertos sem revelar agonia ou desespero, a semelhança com o próprio Cristo.

E por falar em Cristo, o próprio é , sem dúvida, o corpo mais exposto da história, em toda a sua crueza. Os cristãos fizeram dele o símbolo de uma religião que mudou o mundo. No início, bastava a cruz para lembrar o sacrifício do Calvário.

Mais tarde, sobretudo na Renascença, pintores e escultores colocaram o corpo quase nu coberto de chagas, porejando sangue da cabeça aos pés. Nas catedrais espanholas há crucifixos terríveis, impossível qualquer tipo de prece diante de um homem que muitos consideram um Deus.

Tivemos também a exposição do corpo de outro ditador, Benito Mussolini, que foi pendurado num gancho de açougue, de cabeça para baixo, numa praça de Milão.

E para citarmos um exemplo doméstico da vingança que não respeita a morte, temos o caso de Tiradentes. Não bastou enforcá-lo.

A rainha de Portugal mandou esquartejá-lo, pedaços de seu corpo foram expostos ao longo da estrada que ligava o Rio de Janeiro a Ouro Preto, então capital de Minas e sede da Inconfidência. De um lado, a vingança da Corte contra o rebelde; de outro, a lição para que ninguém mais tentasse se libertar da metrópole europeia.

Por acaso, citei exemplos contraditórios. Dois tiranos (Mussolini e Kaddafi) e dois heróis de causas populares (Che Guevara e Tiradentes).

O caso de Cristo é especial. Um dominicano francês, frei Corigan OP, publicou um artigo nos meados do século 19, propondo que a igreja abolisse o corpo de Jesus dos crucifixos, ficasse apenas com a cruz enxuta e poderosa, bastava como símbolo e mensagem. E para espantar os demônios e os vampiros.

Para compensar a falta de um elemento humano como logotipo de uma religião que prega o amor, ele propunha a imagem do Menino Jesus na manjedoura de Belém, os braços estendidos, não para pedir proteção, mas para proteger aqueles que desejava salvar.

Bem, encerro esta crônica fazendo uma autocrítica. Falei em kaddafi, Che Guevara, Tiradentes, JK, Mussolini e Jesus Cristo.

De quebra, na jovem estuprada. Contrário a boa norma do jornalismo, falo muito e não concluo nada.

De bom grado, deixo a conclusão para os outros -se por acaso é possível concluir alguma coisa da história da humanidade.

Folha de São Paulo, 28/10/2011