Nascida e moradora do Uruguai, era dona de terras, gado, imóveis em várias cidades europeias, frigoríficos e um navio refrigerado para transportar carne e frutas para diversos países.
Esse brilhante patrimônio era diminuído porque também era minha tia por parte de mãe e tia de uma cambada de primos espalhados, sobretudo no antigo Estado do Rio.
Sem filhos, já nos seus 80 anos, era o sonho de consumo e das esperanças de todos os seus sobrinhos. Tinha um procurador no Rio que ocupava todo um andar num edifício da avenida Rio Branco.
Ia duas vezes por ano à Europa, viajava no Rex, que era o orgulho da Itália fascista, e fora recebida pelo menos uma vez pelo papa, então o Pio 11, que a abençoava todos os anos com bulas especiais.
E de Sua Santidade ganhara um terço cujas contas eram pérolas cultivadas e tinha um crucifixo de prata que se abria como um pequenino cofre. Dentro dele havia uma pequena lasca da madeira que fizera parte da cruz em que morrera Jesus Cristo, sendo, por consequência, uma relíquia preciosa e referendada pelo Vaticano. Disputadíssima por todas as beatas do mundo.
Nas viagens à Europa, o navio fazia escala de um dia no Rio, e ela nos visitava, afinal, éramos os únicos parentes de sangue que lhe restavam.
Numa dessas visitas, veio acompanhada do procurador, que tomou referências básicas da família, uma vez que chegara a hora de providenciar o testamento.
Foi um alvoroço. O primo Torquato, que morava em Barra do Piraí, deu entrada para comprar uma fazenda enorme, o primo Nelson trocou o seu Ford Bigode 1929 por uma reluzente "baratinha", um carro esporte de dois lugares e um banco do lado de fora na parte traseira, onde cabiam mais duas pessoas.
Era o top em matéria de elegância e fartura: todos paravam quando passava pela rua uma dessas joias da indústria automobilística.
Um outro primo, de cujo nome não me recordo, mas que tinha o apelido de Zuth (não sei se Zuth ou simplesmente Zute), estudante de direito, encomendou uma lancha nos estaleiros da Fincantieri, em Veneza Mestre, que até hoje constrói os grandes navios de cruzeiro que navegam pelo mundo.
O alvoroço não atingiu minha mãe, e meu pai já se considerava um magnata quando alguém lhe dava um simples bom-dia.
Desconfio que ele nunca acreditou na história desse testamento e continuou tocando sua vida modesta de jornalista e criador de galinhas que lhe davam muito trabalho e um bom reforço para seu orçamento doméstico. Chegou a praticar o escambo, trocando ovos com os donos do armazém e do açougue.
Tia Alzira morreu em odor de santidade em Orvieto, perto de Roma, e o testamento aberto em Montevidéu deixava toda a sua fortuna para Los Curas, uns frades uruguaios que fabricavam um vinho tinto que vendiam em imensos garrafões e haviam se comprometido a rezar missas pela alma dela até o fim dos tempos.
Mesmo assim, deixou alguns pertences pessoais para os sobrinhos brasileiros, minha mãe ganhou o tal terço de pérolas cultivadas e com a relíquia da cruz do Calvário, que ela beijava em dias de tempestade e com o qual foi enterrada.
Bem, estou lembrando esse fato histórico em minha família toda vez que ouço falar nos royalties do pré-sal. A briga entre os municípios que se julgam com direito à fortuna submersa, as hesitações do governo e do Congresso a respeito da divisão dos despojos, tudo isso para mim é um filme já visto, "déjà-vu", como dizem os franceses.
Não quer dizer que duvide da tecnologia e dos entendidos no assunto. Mas, na crônica da humanidade, sempre que se descobre um patrimônio gigantesco, os possíveis pretendentes, com ou sem razão, começam a gastar por conta. Não me admirarei se um dia desses vir nas ruas uma "baratinha" reluzente dirigida pelos ministros e autoridades da área econômica.
Dona Dilma não é carola, como foi minha mãe, talvez não se contente com uma relíquia abençoada ou não pelo papa. Mesmo assim é preciso cautela.
Los Curas (que os há em todos os tamanhos e intenções) estão atentos e na surdina, pensando não nos garrafões de vinho, mas em barris de petróleo que poderão lucrar.