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Em defesa das nossas crianças

 

As esferas de poder tratam a educação mediante um plano de metas e camadas estatísticas, tão deploráveis quanto duvidosos, submetendo alunos e professores a chantagens numéricas, a um plano de metas em que os gestores (que caem na escola de paraquedas e com planilhas de custeio) decidem a frio os rumos de uma escola eficiente, com resultados imediatos, onde a cidadania é tratada com leviandade. Em paralelo, um menino de dez anos fere a professora na sala de aula e suicida-se logo depois. 

Não posso e não me atrevo examinar as circunstâncias dessa tragédia. Seria desrespeitoso, seria grave, seria uma violência posterior à violência. Chamo a atenção para o fato de que o número de crianças que se suicidam ou colocam a vida em sérios riscos não é pequeno. E disso somos todos culpados. A família e a escola, por ignorância ou desleixo, assim como as esferas do Executivo, que não enxergam a educação como política de estado, mas deste ou daquele governo, com respostas  mesquinhas e fins eleitoreiros.

As crianças sofrem e reagimos com indiferença ou insensibilidade, frente a suas angústias e depressões. Minimizamos tudo, como defendem Winnicott, Bowlby e Elizabeth Paulon.  Somos maus gestores de nossas crianças. A escola e a família andam tranquilas se as notas são boas e o comportamento, dócil. Temos nesse caso um aluno modelo, mesmo que a criança dê sinais preocupantes de infelicidade. Se as notas são baixas e o comportamento, difícil, respondemos com punições e ameaças. Aumentamos o sofrimento das crianças com uma quota ainda maior e com a desfaçatez das boas intenções.

A nota boa ou má, o comportamento dócil ou rebelde dizem coisas importantes e ameaçam reduzir, quando mal interpretados, o tesouro da subjetividade humana. A escola deve promover essa riqueza. Urge lembrar que a educação não deve ser uma olimpíada, voltada para uma espécie de darwinismo social, que promova os mais “fortes”, os que terão êxito profissional, em detrimento dos mais “fracos”, do ponto de vista do aprendizado ou do comportamento em sala.

Os psicanalistas sérios mostram o modo pelo qual as crianças têm sido abandonadas, ou porque os serviços que competem aos pais são quase todos terceirizados, e não passamos de administradores dos filhos, que abandonamos quando choram,  quando se obstinam, ou se entristecem, em nome de uma educação severa, sem amor, ou de amor ambíguo, para que elas “aprendam”. Aprendam o quê? A brutalidade de pais e professores, o desencanto com o mundo e o sentimento de culpa que as crianças atribuem a si próprias quando humilhadas ou abandonadas?  Não devemos aumentar o fantasma de uma culpa que não é delas. O afeto não compromete jamais. O que compromete é a sua ausência.

É preciso dizer as coisas com clareza quase selvagem. Sobretudo porque ouvimos afirmações deploráveis que defendem os maus tratos, físicos ou morais, a severidade, um leque de procedimentos fascistas que demonizam as crianças como se fossem criminosas, pequenos algozes, monstruosos, de que os adultos, indefesos, seriam facilmente vítimas fatais. 

Somos todos culpados, como dizia Hermann Broch. A questão hoje é de uma urgência inversamente proporcional à compreensão de secretarias e ministérios. Não basta  responder com ações puramente administrativas ou policialescas, aumentando o número de câmeras ou de vigilantes. A nossa guerra é contra as políticas irresponsáveis que se arrastam na educação de nosso país. Precisamos de outro sistema de cuidados da família e da escola, ao passo que o poder executivo deverá ter a coragem de criar um plano de carreira em que os professores trabalhem felizes, numa só escola, ao lado de terapeutas e assistentes sociais do mesmo quadro, que observem as crianças, que atuem como interface  entre a escola e a família. É isso o que precisamos entender de uma vez por todas, pela vida e pelo futuro das crianças.

O Globo, 28/09/2011