Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Golbery e a lucidez do poder

Golbery e a lucidez do poder

 

Celebra-se, neste mês, o centenário do general Golbery do Couto e Silva. Confronta-se um dos reptos mais instigantes, do que seja o recado final da pessoa ao vencer todos os estereótipos fáceis do vulto crítico do governo militar de 64. Fundador do SNI, foi o responsável pelo avanço determinado de uma tecnocracia autoritária.

A distância histórica não nos permite, ainda, atingir as diferenças entre o castelismo, como um regime clássico de elites de poder, querendo voltar ao Estado de Direito, e a emergência do governo Geisel, já inteiramente sob a influência do seu chefe da Casa Civil, levando à dita abertura lenta e gradual, completada pelo general Figueiredo.

Desalojado do poder, Golbery, com a saída de Castelo, deu-se conta da inviabilidade dos retomismos ingênuos do primeiro biênio. Lançava-se à construção ambiciosa de uma partilha da decisão autoritária, a partir do conhecimento sistemático da informação, do debate das suas alternativas decisórias, e da complexa conjuntura militar na busca dos consensos.

Toda essa construção se apoiaria na suas obras "Planejamento Estratégico" e "Geo-política do Brasil", em que acumulou toda a experiência de FortWorth e no pós-guerra de 45, trazida e aclimatada à Escola Superior de Guerra, consoante o testamento que legou ao nosso futuro, na sua memorável conferência de 81, na Fortaleza de São João. Golbery quebrava o iluminismo das boas intenções militares, ou da imaculabilidade das Forças Armadas.

Ao sofisticar toda a visão do plano psicossocial da mudança nacional, condenava os moralismos sôfregos, e a ingênua transparência do que fossem forças da nacionalidade e forças antagônicas, como ainda registrara a Constituição de 67. Ao mesmo tempo, plano da mais rigorosa e profunda institucionalização do poder no País, Golbery esclareceu a pretensão das Forças Armadas ao exercício da soberania, no conflito com a sociedade civil, delineando, nas suas exigências mais modernas, o conceito de segurança nacional. Evitamos, por isso mesmo, e ao lado do processo da descompressão, todo o salvacionismo militar, por este engenheiro do poder, apoiado no mais ambicioso dos balisamentos da atividade intelectual, que ia de Wittgenstein a Foucault, a Roland Barthes e Hans Gadamer.

O estereótipo do "bruxo" escondia o exercício de uma quase alquimia da razão concreta, que explicitou a tarefa das Forças Armadas, para além de uma mera cruzada restauradora da ordem social. À acusação de maquiavélico, dava a resposta que o próprio florentino emprestou aos Médicis, ao dizer que "é só nesse labor que, de fato, e, a longo prazo, a razão encontra a história".

Nesse longo prazo, está a exceção em que as Forças Armadas brasileiras, ao contrário da América Latina hispânica, foram, e bem para além da simples descompressão, à estabilidade nestas novas décadas e, de vez, à nossa democracia. O centenário de Golbery deixa-nos diante de um dos inesperados founding fathers da Carta de 88, e do que nela repete e consolida, definitivamente, o contraponto entre a soberania e a segurança nacional.

Jornal do Commercio (RJ), 26/8/2011