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Saúde acima de tudo

 

Primeiro, foi um livro aterrador de Dino Buzzati, o mesmo de "O Deserto dos Tártaros", que lhe valeu a classificação de Kafka italiano. Mas seu maior sucesso, creio eu, foi "O Oitavo Andar".
 
Numa história simples e terrível, um camarada encontra na rua um amigo médico que estranha a sua aparência meio doentia. Conversa vai, conversa vem, o médico recomenda que o amigo faça um exame de rotina, nada de grave, apenas para ver como vão as coisas.

O amigo aceita a sugestão, vai fazer os exames de rotina e é encaminhado para o oitavo andar do hospital cujo diretor era o médico seu amigo. Suspeita nenhuma, apenas certa palidez e, volta e meia, alguma insônia.
 
No exame, o especialista manda fazer uma radiografia e descobre que há um sinal estranho no pulmão direito. Recomenda uma tomografia, cujo equipamento se localiza no sétimo andar do mesmo hospital.

Feito o novo exame, aparecem uns gânglios inflamados na região do pescoço e é pedido um novo exame, a ser feito no sexto andar, onde há um equipamento de última geração. Para a garantia de todos, o sujeito precisa ser internado. Nada grave, apenas uma garantia suplementar do hospital.

Feito o exame, descobrem a possibilidade de uma infecção sanguínea e o sujeito é transferido para o quinto andar, onde fará hemodiálise e transfusão. Para maior conforto e segurança, ele é transferido para o quarto andar, onde é submetido a uma biópsia e, mais tarde, já no terceiro andar, é operado de um nódulo suspeito de malignidade.

Recuperado da cirurgia, passa por uma avaliação acurada no segundo andar, onde contrai uma septicemia que o leva diretamente ao primeiro andar. Uma semana depois, já no primeiro andar, está numa UTI em estado terminal. Na segunda noite, um rabecão o espera no andar térreo para as providências de praxe.

Aí termina a ficção de Dino Buzzati. Na vida real, um jovem italiano, de 27 anos, sofre de uma estranha coceira nos pés. Não consegue dormir e procura o mais famoso dermatologista de Roma, que não pode atendê-lo devido a um congresso no Canadá, onde será o principal expoente. Apresenta-o ao seu assistente, que receita pós e pomadas, além de antibióticos.

Não havendo resultados, convocam um japonês, o mais famoso acupunturista da Europa continental. Esfrega o rapaz com essências orientais e agulhas da Polinésia, tidas como as mais eficazes.

O rapaz não melhora. O dermatologista famoso retorna do Canadá e manda tomar cinco remédios alternados, de duas em duas horas, antes das refeições. À noite, depois de uma dose cavalar de tranquilizantes, o sujeito é pendurado no leito de cabeça para baixo, para que os pés fiquem o mais altos possível.
 
Não havendo resultados, é sugerida uma consulta ao mais famoso oncologista de Roma, que descobre um linfoma não Hodgkin e prescreve cinco sessões de quimioterapia à base do Mabthera, a última novidade para casos de câncer linfático.
 
Numa das sessões, o coração do rapaz dá sinais de anomalia e o melhor cardiologista da península Ibérica, chamado às pressas (estava tratando um xeque da Arábia Saudita que havia sofrido um infarto), sugere um transplante da válvula mitral que não está funcionando bem. Uma serra especial, parecida com uma dessas motosserras que devastam a floresta amazônica, abre o peito do rapaz, afasta as costelas e introduz uma válvula mitral retirada de um porco, que tem as mesmas características da válvula original.

Nenhum dos procedimentos melhora a coceira furiosa do rapaz, que sempre andava e dormia de meias pretas, por superstição ou outra causa qualquer. Uma tarde, após o banho regular, a enfermeira não encontrou um par de meias pretas, foi ao ambulatório e trouxe meias brancas.

Apesar do peito aberto pela cirurgia que lhe arrebentou o osso esterno e lhe separou as costelas, o rapaz dormiu o melhor sono de sua vida. Nenhuma coceira nos pés.
 
A faxineira que lhe trouxe o café na manhã seguinte reparou nas meias brancas e contou que também não podia botar meias pretas por causa de uma alergia que não a deixava dormir. Na realidade, nem dormia de calcinha, pois sentia coceiras lancinantes na região dos países baixos.

Folha de São Paulo, 19/8/2011