A multidão da Praça da Catalunha, em Barcelona, e da Praça Real, em Madrid, nos dois últimos meses, manifestou uma revolta profunda com os procedimentos democráticos tradicionais para o avanço das liberdades do bem-estar do nosso tempo. Põe em causa, e imediatamente, o fracasso das mediações políticas vividas pelo Ocidente desde a Revolução Francesa e Americana. Retoma-se o questionamento de si, as maiorias congressais exprimem um conformismo dominante, e, por aí, as visões da mudança exigem a presença contínua das minorias na decisão política. Tal, sobretudo, quando a opinião pública ou a comunicação social expõem-se aos controles midiáticos ou, sobretudo, ao tribalismo da internet e das novas sociedades fechadas, no intercâmbio desses grupos e de sua visão da realidade.
Antes de se esvaziar, a Praça da Catalunha constituiu-se em grupos e subgrupos, divididos não só entre as prioridades de um que fazer, mas sob a própria dúvida da chegada a qualquer consenso. Ou, mais ainda, à visão ampla das contradições em que irrompe a nova década.
Estaria em causa a caução de progresso social que, intrinsecamente, a democracia envolveria, inclusive diante das perplexidades sobrevindas à derrubada das ditaduras pela "primavera árabe" no Mediterrâneo. Constata-se, mesmo, a reversão desse avanço institucional que parece emergir, por exemplo, na nova Constituição da Tunísia, que elimina o secularismo, ou na Carta egípcia em preparo, que abre caminho para os partidos únicos e, ademais, de denominação religiosa.
A prioridade, por outro lado, entre o regime de liberdades e a garantia de efetiva unidade coletiva nacional defronta o impasse líbio e o risco da volta, com a queda de Kadaffi, a sistemas clânicos e ao mais tosco dos exercícios do jogo político. E é, já, à coexistência com o ditador de Trípoli que começam a se render os democratas de Benghazi ou, mais ainda, a nova atitude da Otan, a partir do governo Obama.
O risco latente pior é que essas neorreversões democráticas, num Mediterrâneo árabe, não escapem a um fundamentalismo siderante que as aproxime do governo dos aiatolás, em que a radicalidade de Ahmadinejad seja superada pelas novas diretrizes de Khamenei -o garantidor dos desígnios da teocracia de Teerã e dos desejos de Alá. Por força, o primeiro remédio frente a tais regressões está na convivência com a Turquia, sob a inspiração de Kemal Ataturk. Contudo, e em todo o escrúpulo da democracia, os últimos resultados eleitorais do primeiro-ministro Erdogan mostram o quanto as novas maiorias não só voltam ao uso do véu, como querem, exatamente pela liberdade do voto, fazer também do laicismo um legado do passado.
Jornal do Commercio (RJ), 22/7/2011