Senhores acadêmicos,
Há oitenta anos, nesta data, Alphonsus de Guimaraens – na vida civil Afonso Henrique da Costa Guimarães – completava, em Ouro Preto, vinte anos; e longe, num casarão de Campinas, nascia outro poeta. O nome que teve era o mesmo que num drama inédito, guardado em vossos arquivos, seu parente Luís Nicolau Fagundes Varela dera a uma personagem, em estranha profecia.
Muito hesitei antes de pedir a Austregésilo de Athayde que fixasse esta noite para festa tão cara ao meu coração. Não porque receasse as traições desse músculo caprichoso mas porque, se agora festejamos os oitenta anos de nascimento de Guilherme de Almeida, faz apenas um mês o fizemos aos quarenta de sua recepção nesta Casa. Ambas as datas se incorporaram à história literária do país. Balancei entre elas e terminei escolhendo a de hoje – que para ele sempre teve o gosto muito nacional dos papos-de-anjo – não por motivações gulosas mas pela convicção profunda de que a vida é mais importante do que a Literatura.
Entretanto, que extraordinária noite foi aquela de 21 de junho de 1930! Guilherme de Almeida vinha da explosão poética com que, em 33 sonetos de rapaz, logo decorados país afora, cantara esta coisa eterna: o amor. Mas vinha, sobretudo, do grande episódio da revolução literária que atacara o burguês, o soneto, a Academia... A Semana de Arte Moderna é de 1922; em 1924 Graça Aranha rompe com esta Casa, nela própria; de 1925 são Meu e Raça; ainda nesse ano Guilherme leva do Rio Grande do Sul a Pernambuco, ao Ceará, a boa nova do Modernismo; mas já em 1926 o poeta vos traz os versos de Encantamento para o Prêmio de Poesia. Cantam de novo as formas medidas:
Sacode tua vida como um guizo
sobre a minha!
E depois deixa-me só, pensando
que é de alegria que estou chorando.
E em 1930, na vaga de Amadeu Amaral, o primeiro modernista entra na Academia. Ninguém é bastante profeta a ponto de prever que o ano não findará sem que o eminente Sr. Washington Luís, que preside a República, e só por doente não o faz à sessão, deixe, deposto, o Catete. Por ora, tudo é elegância e Literatura. O Sr. Manuel Bandeira aqui vem pela terceira vez – na primeira ouvira Bilac falar sobre Gonçalves Dias, na segunda Graça Aranha pregar o espírito moderno, e é agora visto, a um canto, pelo cronista de sucesso de então, conversando com o Sr. Mário de Andrade. O nome desse cronista? Peregrino Júnior, que aliás se fizera acompanhar de sua mulher, a bela Sra. Wanda Peregrino. Das demais brasileiras presentes, permitireis, Sr. Presidente, que cite apenas um nome como símbolo e síntese: outro cronista está deslumbrado pela visão da Srta. Maria José de Queiroz, “um sonho róseo”. Terá sido nessa noite que conseguistes realizar o milagre de convencê-la a tornar-se a Sra. Austregésilo de Athayde, pois não éreis tão feio quanto parecíeis, quanto pareceis? Bem sabemos, eu e vós, o segredo desses milagres, ambos tendo tido a sorte de unir os nossos destinos a mulheres o seu tanto quanto mais belas e menos trigueiras do que nós... Acrescentava Peregrino: “Foi assim que naquela noite não faltou ninguém no Petit Trianon, nem mesmo os escritores e os acadêmicos.” Não vejais na frase um ressaibo da ironia modernista. A reconciliação era completa. Alceu Amoroso Lima, que anos antes carregara nos ombros Graça Aranha enquanto Coelho Neto gritava que era o último heleno, já se desfazia do horror sagrado pela casa a que pertencera o amigo da sua infância, o bom gigante Afonso Arinos, e conversava com Prudente de Morais, neto, e Antônio de Alcântara Machado; e a presença de Tarsila do Amaral – com cuja beleza brasileira, ai de Coelho Neto!, nenhum grego jamais ousara sonhar, e cuja arte absorvera o grito radical de Antropofagia nas ingenuidades azuis da Pastoral – mostrava a unanimidade da alegria modernista pela abertura das portas da Academia a Guilherme de Almeida. Só uma voz, a do sempre rebelde, discordava, mas – encontro a notícia em comentário do então jovem jornalista Júlio Barata, a quem o teria contado Jaime Adour da Câmara – Oswald de Andrade não pudera realizar a agressão com que pretendia exprimir, num grande gesto fisicamente punitivo, sua revolta literária diante da acomodação do Modernismo à Academia. Avisada a tempo, a Polícia – não mais doce então do que hoje ou amanhã – botara na cadeia Lúcifer, a quem anos mais tarde Guilherme de Almeida teria dado (sufrágio acadêmico é segredo que nunca se desvenda de todo) o único voto com que contou Oswald quando se candidatou, em 1940, à Casa contra que atirara todo o seu sarcasmo.
Mário de Andrade e Manuel Bandeira não se limitaram à presença: escreveram nas folhas. Mário achava pueril o espanto causado pela eleição de Guilherme,
[...] a frase “esta não é a república dos meus sonhos” não é a dum indivíduo determinado, mas a própria síntese da nossa maldição humana, genérica e geral, mas em Literatura a divisão mais primária que a gente pode estabelecer é a de poderosos e malditos, malditos somos nós, mas os malditos não podem resistir aos gestos elevados da Literatura que a Academia está fazendo agora,
a eleição de Guilherme o enchera de verdadeira alegria: “No momento presente, não vejo na Literatura Brasileira uma organização mais integral de poeta que a dele: lirismo, grande faculdade imaginativa, artista incomparável.” A Academia era o holofote que lhe faltava, bateu em cheio nele “pelas escurezas malditas”. Manuel não se limitou a uma, escreveu duas crônicas, a primeira para festejar a recepção, a segunda para narrá-la. Em ambas repete seu louvor a Guilherme, “o maior artista do verso em língua portuguesa”. Até chegava a sentir uma ternurazinha pela Academia. E contava tudo, com gosto, a noite de festa, os discursos, as condecorações de Gustavo Barroso. Adelmar Tavares “bonito como um almirante”, Alberto de Oliveira, Silva Ramos, Augusto de Lima preferindo a casaca, João Ribeiro também, songamonga displicente.
O próprio Guilherme entra na roda. Propõe um dilema: “Ou me consideram um poeta passadista, e nesse caso devo aceitar as honras de acadêmico, ou me consideram modernista, e nesse caso a minha entrada representa um triunfo para nós.”
E revela o plano do seu discurso. Não queria, como poeta moderno, sujeitar-se a fazer uma oração pesada, em que tratasse, minuciosamente, da vida e obra de Amadeu Amaral; mas não iria, por outro lado, revoltar-se contra as normas da tradição. Inovaria – sem quebrá-las.
No hotel, horas antes, ao vestir o fardão, sentira-se numa couraça medieval. Os acadêmicos lhe pareciam senadores romanos. A primeira página do discurso era só hieróglifos. Mas súbito, no céu leve, uma estrela cadente riscou a noite. Era a “superstição do voto formulado”. Entrou com passo firme e leu com voz clara.
No dia seguinte, o adolescente Luís Martins, que sabia de cor os versos de Guilherme, vendo-lhe nos jornais o retrato de fardão, achou seu ídolo moço demais para a imortalidade acadêmica...
Reli agora aquela página, que inundou os meus 15 anos como súbita, iluminada revelação.
Guilherme via, na sucessão de poetas que marcara a Cadeira 15 – o patrono, Gonçalves Dias, o fundador, Bilac, o sucessor, Amadeu Amaral, a mão do destino que fazia
dela a Cadeira da Poesia: Gonçalves Dias, o ritmo, Bilac, a forma, Amadeu, o pensamento; e fez o louvor da Língua Portuguesa e da Poesia do Brasil, a grande e rica árvore, das raízes à fronde, em prosa a que não faltavam ritmo, metro e, por vezes, rima.
Poderia acrescentar que Guilherme foi o sentimento. E encerrar este discurso.
NÃO SÓ POETAS
Permiti-me discordar, porém, desde logo, do meu antecessor. Não é só a Poesia que define esta Cadeira, nem ela é, entre todas, a Cadeira de Poesia. Pois da Poesia também poderiam ser as que têm como patronos Castro Alves, ou Álvares de Azevedo, ou Fagundes Varela, ou Casimiro de Abreu. As que fundaram Alberto de Oliveira ou Raimundo Correia, ou esses criadores de imagens, Nabuco e Machado de Assis; ou por onde passaram Vicente de Carvalho, Manuel Bandeira, Ribeiro Couto, deixai-me acrescentar Guimarães Rosa. Não. Guilherme não tinha razão. Nem esta Cadeira é, entre todas, a da Poesia, nem foram apenas poetas os que, como ele, me antecederam.
HOMENS DE JORNAL
O próprio Gonçalves Dias foi jornalista, e dos que mudam a face dos jornais. Direis que era fogo de palha, essa ocupação que o leva a redigir debates no parlamento, a ocupar-se, das nove da manhã à meia-noite, e às vezes depois, em assistir às sessões do Senado para o Jornal do Commercio, que lhe pagava 200 mil-réis mensais. Era pouco. Passou a trabalhar também no Correio Mercantil e no Correio da Tarde.
“Como conseguiria”, pergunta Lúcia Miguel Pereira, “conciliar os dois Correios, jornais inimigos que se atacavam ferozmente?” São mistérios que nós, homens de jornal, conhecemos de perto, e que o meu caro Carlos Castello Branco soube certa vez decifrar, entretendo consigo próprio, de vespertino a matutino, uma das mais violentas polêmicas da imprensa brasileira contemporânea, e dando corpo à novela em que Aluísio Azevedo previra situação semelhante. Gonçalves Dias andou mesmo perguntando que fariam os leitores se fossem Deus, Reis ou Parlamento, enquanto, também antecipando a moda de hoje, informava sobre si próprio, bailes de máscaras a que fora no Teatro São Pedro, fantasia de Otelo que vestira e o tomaram por João Caetano, pessoas que encontrara... Comenta o burro empacado na Rua da Alfândega com sua pipa d’água, o chefe de Polícia mandando o carro parar contramão na Rua da Ajuda para conversar na porta do ourives Michaud, as águas servidas despejadas dos sobrados, os tílburis sem lanterna nas noites de luar. Passa do grave ao indignado quando um oficial manda açoitar na Praia Vermelha dois soldados seiscentas vezes: fica um moribundo, o outro morto; ou quando a patrulha encarregada de calar capoeiras acutila no rosto um marinheiro português; ou quando sobe até ele o rumor das torturas e da solidão na cadeia do Aljube. Frequentemente ria. Aumenta a tiragem do Correio Mercantil (felizes tempos!) indagando qual a melhor e a pior coisa do mundo. Conseguiu – diz a biografia – trazer mais renda para o jornal; e no fim de um mês veio a resposta: a melhor coisa era a mulher-anjo, que ele próprio descreveu, a pior a mulher-demônio, cujo retrato teceu o Dr. Macedinho, Joaquim Manoel de Macedo.
Jornalista também foi Olavo Bilac. Ele recorda, enternecido, ao escrever no prefácio de Ironia e Piedade o nome de Ferreira de Araújo (a quem a minha classe está devendo um livro que o ressuscite, a esse grande profissional, mestre da inovação e da renovação, a esse grande escritor que era um homem bom, o “elefante virgem” como dele disse o desabusado Capistrano de Abreu),
[...] o tempo em que, desconhecido e feliz, com o cérebro e o coração cheios de esperanças e de versos, eu parava muitas vezes, naquela feia esquina da Travessa do Ouvidor, e quedava a namorar, com olhos gulosos, as duas portas estreitas da velha Gazeta, que, para a minha ambição literária, eram as duas portas de ouro da fama e da glória. Nunca houve dama, fidalga e bela, que mais inacessível parecesse ao amor de um pobre namorado: escrever na Gazeta, ser colaborador da Gazeta; ser da casa, estar ao lado da gente ilustre que lhe dava brilho, – que sonho!
Dezoito anos! “Felizmente, a minha mocidade não me permitia mortificações prolongadas: depois de um namoro de uma hora, lá me ia eu, rua abaixo ou rua acima, sonhando e rimando.” Tudo lhe parecia digno de rima, do sol aos mendigos: “Nem sempre os meus sapatos tinham as solas perfeitas, nem sempre as minhas calças tinham a barra sem fiapos... Mas o meu andar era soberano e firme, como o de um deus perdido na terra.” Já então Bilac começara, pelo modesto e necessário mister de conferente de revisor, na Gazeta da Tarde, de José do Patrocínio, a carreira de que somente com as sombras da tarde se desligará, mas nunca de todo. Numa de suas últimas entrevistas lembra essa iniciação profissional: “A imprensa, que era o nosso ganha-pão único, pagava-nos mal, quase nada, comparado com os bons ordenados de hoje.” Pobre Bilac, os bons ordenados daquele tempo... Até as vésperas do fim, ele fez Jornalismo, um Jornalismo que foi das páginas rubras de A Rua à campanha do serviço militar, que tenta com A Bruxa uma revista literária e política, mas tem como leito permanente e profundo sua presença na Gazeta.
Amadeu Amaral foi dos meus, dos humildes, capazes de se dedicar às tarefas anônimas da cozinha de jornal. Recorda Paulo Duarte os dias em que subiu com ele à sala da redação do Estado de S. Paulo e, os dois sós na solidão da tarde paulistana, Amadeu lhe passava um baú grande de folha com ramagens cor-de-rosa, para depois, recebendo carta a carta das mãos do companheiro, escrever em cada uma, com paciente minúcia, o nome do redator que devia se ocupar da matéria... Começara apenas a tarefa que entraria horas adentro, raramente interrompida para um jantar no Fernandes da Rua Santa Ifigênia ou num dos restaurantes do Largo Paissandu. O mais comum era, no fim da noite, Amadeu pedir sempre o mesmo sanduíche de queijo, a mesma cervejinha preta de sua estimação. E não foi sem espanto que, entrando, uma vez, de repente, na sala do lado, viu o contínuo Brasílio telefonando para o Café Paulista, que ficava em frente:
– É do Café Paulista? Então faça o favor de me mandar já, aqui na redação do Estado, um sanduíche de queijo e uma pretinha – ouviu? Uma pretinha bem fresca para o seu Amadeu!...
E ria do duplo sentido, com intimidade, o velho...
Amadeu trabalhou noutros jornais, trabalhou toda a vida em jornal. Mas seu nome é inseparável da história do Estado de S. Paulo, onde ficou vinte anos, de 1910 até a morte. Não o deixou nem mesmo quando tentou a experiência carioca, num biênio, na Gazeta de Notícias: mandava do Rio correspondência constante para o “seu” Estado, já naqueles tempos padrão da imprensa brasileira.
E no Estado um dia lhe apareceu o jovem Guilherme de Almeida, que também foi homem de imprensa, ao ponto de um dia, por questões de jornal, ter corrido o risco de perder a casa que tanto amava, na colina paulistana, com seu jardim de giestas louras e ibiscos vermelhos.
Diretor das Folhas, Guilherme criou ali o Folha-Informações, que começou com seis moças, a se revezarem duas a duas, numa salinha escura e apertada da Rua do Carmo. Dava a hora certa, acordava os desatentos, informava o horário dos bondes. Hoje tem outro horário a precisar: o da descida dos homens na lua... No mês anterior à morte de Guilherme, trinta vozes femininas responderam a 81.576 consultas. E dizem que os poetas não são homens práticos!
Mas foi ao Estado que Guilherme se ligou para sempre. Não só como redator ou como cronista, até como repórter: Cosmópolis – seu último livro de prosa – reúne, em 1962, oito reportagens de 1929 sobre os bairros estrangeiros de São Paulo. Eram agora história viva... Nos últimos anos, ausente dos cansaços quotidianos, e até vencê-lo a doença, passava pela redação duas, três vezes por semana. Ia conversar, buscar a correspondência. Um dia, abrindo uma carta, caiu do envelope rasgado um brilhante, lágrima que o leitor chorara diante de uma crônica sua...
O CINEMA: GUILHERME E... BILAC
Há, na atividade jornalística de Guilherme, um aspecto que não podia ter sido adivinhado por Gonçalves Dias: foi ele o primeiro cronista cinematográfico brasileiro, tarefa que exerceu com apaixonada independência, – louva Eiseinstein e “O Couraçado Potenkim”, King Vidor e “Aleluia” – e, além disso, com tal senso profissional de pontualidade que seu fardão – já naquele tempo este verde enfarpelamento sufocante não podia ser pago com salário de jornalista ou escritor – lhe foi oferecido pelas empresas distribuidoras de filmes. É seu, mesmo, o primeiro livro publicado no Brasil sobre Gente de Cinema. Foi o primeiro a assinalar a influência cinematográfica na linguagem quotidiana, e em alegre caricatura replica ao perfil de Iracema com o retrato da diva Mae Murray. O cinema invade sua própria poesia:
Na grande sala escura
só teus olhos existem para os meus:
olhos cor de romance e da aventura,
longos como um adeus.
Só teus olhos; nenhuma
atitude, nenhum traço, nenhum
gesto persiste sobre o vácuo de uma
grande sombra comum.
E os teus olhos de opala,
exagerados na penumbra, são,
para os meus olhos soltos pela sala,
uma dupla obsessão.
Um cordão de silhuetas
escapa desses olhos que, afinal,
são dois carvões pondo figuras pretas
sobre um muro de cal.
E uma gente esquisita
em torno deles, como de dois sóis,
é um sistema de estrelas que gravita:
são bandidos e heróis...
São lágrimas e risos;
são mulheres com lábios de bombons;
bobos gordos, alegres como guizos;
homens maus e homens bons...
É a vida, a grande vida.
que um deus artificial gera e conduz,
um mundo branco e preto, e que trepida
nos seus dedos de luz...
Quando se volta mais tarde para o passado, Guilherme o define:
O cinema do tempo de Carlito,
duas estrelas se encontrando no infinito...
Olavo Bilac é um predecessor. Arrastado, num Dia de Finados, a sucessivas sessões em quatro dos dezoito cinemas que começavam a fazer a delícia dos cariocas, ele conta:
Estou derreado, tenho dores nos rins e nas pernas, doem-me os olhos de ter visto tanta coisa, dói-me o cérebro de haver pensado tanto. A minha viagem durou duas horas; entretanto, em tão escasso tempo, achei meio de ver meio mundo: estive em Paris, em Roma, em Nova York, em Milão; vi Cristo nascer e morrer; desci ao fundo de uma mina de carvão; estive ao lado de um faroleiro, no alto da torre do farol, entre os uivos das ondas; assisti ao tumulto de uma greve na França; vi o Imperador Guilherme passar revista ao exército alemão na Vestfália; vi Sansão ser seduzido e vencido por Dalila, e sepultar-se sob as ruínas do templo derrocado... Creio que todos já terão compreendido que toda essa viagem foi... cinematográfica. Fui hoje arrastado por um conhecido a quatro dos dezoito cinemas que fazem atualmente a delícia dos cariocas. Paguei o meu tributo à mania da época, e não me arrependo – apesar de estar fatigado como se houvesse realmente vagamundeado durante dois anos por terras e mares.
A TRADUÇÃO E O DICIONÁRIO
Todos estes poetas foram tradutores. Gonçalves Dias morreu ocupado com a Noiva de Messina, de Schiller; um inglês bateu um dia à porta de Bilac para dizer-lhe quanto eram perfeitas suas versões de Shakespeare; e se não encontro traduções de Amadeu, em Guilherme essa atividade da inteligência o levou do francês ao grego. Pois não sei se foi mais difícil traduzir Villon para o português do século XV do que “transcrever” a Antígona – ele dizia “transcrever” – para a língua dos nossos dias.
E a mim não surpreenderá se entre os papéis que se guardam numa lata de flandres, na casa da Rua Macapá, a companheira de Guilherme vier um dia a encontrar um dicionário poético: Gonçalves Dias foi autor do Dicionário da Língua Tupi, Bilac trabalhou quinze anos em seu Dicionário Analógico da Língua Portuguesa, e Amadeu fixou uma contribuição definitiva para o estudo do idioma falado no Brasil com O Dialeto Caipira.
A TENTAÇÃO DO TEATRO
Teatro? Gonçalves Dias deixou a marca no drama romântico; Bilac distrai-se com Eça de Queirós improvisando comédias em verso; e Guilherme, começando por peças... em francês, passou pelas incursões poéticas da sua Scheherazada e foi o tradutor da angústia existencialista de Sartre e do senso trágico da vida de Buero Vallejo. Até Amadeu fez teatro: publicou, num jornal do interior, um diálogo com três personagens e três atos...
OS BOÊMIOS
Foram todos boêmios. Calcule-se o espanto de Caxias diante do moço doutor Gonçalves Dias que tomava banho de riacho entre cervejas, charutos e, naturalmente, um pouco de tiquira, a forte cachaça de mandioca, bebida maranhense de homem macho. Haviam de considerá-lo um demônio, destruidor da sociedade... Bilac, esse nem se fala: é até personagem dos romances em que Coelho Neto reconstitui a boêmia literária do fim do século – e mata as saudades... Amadeu, ainda úmido das lembranças de Capivari, sabia de cor a gíria anarquista de Montmartre e as canções de Aristide Bruant, e frequentava o Sapo Morto, o cabaré literário de São Paulo, onde, como era de regra, usava pseudônimo: chamava-se Noitibó. Assustada, a polícia quis caçar esses apaches, levou-os a sério; e Amadeu rimou, sob a música de “En revenant de la révue”, uma agressiva marcha contra o Chefe de Polícia... Assim, a mocidade de Amadeu é também boêmia – e rebelde. Só deixou de aparecer no Sapo Morto quando uma das frequentadoras se apaixonou por ele, a exemplo, aliás, do que acontecera a Bilac estudante em São Paulo... É o diabo amar sem ser amado, mas é ainda pior ser amado sem amar... Guilherme de Almeida teve esta ousadia única em poeta brasileiro: cantou o uísque em que galopava... E se considerava na velhice o último boêmio, fiel aos horários da noite... em sua casa.
E eram todos alegres. Riam. Sabiam rir. As tristezas ficavam para os versos...
O IDEALISMO AMOROSO E CÍVICO
Há uma herança que reivindico desses homens. Bem sei quanto, nas suas semelhanças, eram diferentes. Gonçalves Dias contrastaria, com seu metro e meio de tamanho, com o alto perfil de Amadeu? O míope Bilac era diverso, com seu pince-nez, do Guilherme de olhos limpos? Usavam gravatas desiguais? Penso em afinidades de outra natureza. O volúvel Gonçalves Dias, oscilando simultaneamente entre tantas ligações desenvoltas, embora fundamentalmente fiel, no íntimo, à impossuída e bem-amada Ana Amélia, e o solteirão Bilac, egresso de dois noivados desfeitos, tinham – juro – o mesmo ideal amoroso de Amadeu Amaral e Guilherme de Almeida: a ideia da fidelidade que caracteriza o amor do Ocidente, heterossexual e monogâmico, mesmo quando foge sempre no horizonte a imagem desse descanso definitivo num sentimento profundo, que supere os desvarios da paixão para encontrar a identificação total, absoluta, criadora, que cria um lar e o povoa de cabeças novas, sentimento que, ao contrário do voto formulado no verso de Vinicius de Moraes, é chama, mas é também imortal. Que importa que Dias e Bilac não tenham conseguido atingi-lo? Na inquietação de um, no sensualismo de outro, era esse caminho que buscavam, o que encontraram Amadeu e Guilherme.
Mas não invoco apenas esse nobre sentido do amor. Todos têm a paixão do país e do seu povo. Gonçalves Dias escreve: “Amo o Brasil como quem mais o ame, e a perspectiva de uma revolução aterra-me e contrista-me.” E como contraponto responde Guilherme, um século depois, em 1964:
Deixem o R para o que é revolta, rigor, repente, rouso, raiva, rancor, rebate, réplica, repique, represália, rude, rígido, rebelde... Sim, deixem... o R de lado. Risquem, rasurem, raspem o R inicial da palavra Revolução e restará a Nossa Verdade. Isto é, aquilo que, de fato, foi a nossa milagrosa conquista na jornada – 31 de março / 2 de abril – a salvadora do Brasil. Sim, nós, ainda ignorada civilização das Índias Ocidentais, descobrimos que “Revolução”, sem a inicial “R”, é apenas isto:EVOLUÇÃO.
Mas não é esse o único ponto de contato. Gonçalves Dias sonhou – e propôs – um “vasto sistema” nacional que preparasse para as Letras, as indústrias, as ciências: escolas normais, bacharelado no curso secundário, escolas industriais coroadas por uma Politécnica, uma Universidade ao lado da Politécnica. O objeto maior dos seus estudos foi o Brasil. Fez-se cientista para lhe pesquisar a etnografia. Mergulhou nos arquivos nacionais e europeus para fundar em documentos a visão da sua História. Voltado para a sorte do povo, em constante “meditação” sobre ela, tinha gosto em se misturar com ele, em adotar seu modo de vestir, como quando escandalizou a vila de Baturité: de camisa por fora das calças e pés no chão...
Bilac encerra a vida em campanha cívica. Ele pede ao Presidente Afonso Pena que em cada capital, em cada cidade, em cada vila do Brasil onde pousar, pergunte aos chefes políticos quantos analfabetos há, “e horrorize-se! porque muitas vezes esses chefes políticos, se quiserem ser francos, hão de no número dos analfabetos incluir-se a si próprios...” “V. Exa. vai governar um povo de analfabetos!” Esse o problema inicial, básico: a educação popular. Discute-se se devemos ter mais ferreiros ou mais bacharéis, Bilac interrompe: é preciso primeiro ter mais “homens”. Era preciso resolver no Brasil três problemas: o da instrução, o do saneamento, o do povoamento. Ele não queria ufanismo, mas “um amor elevado e austero, que reconhece os defeitos da Pátria, não para amaldiçoá-los ou para rir deles, mas para perdoá-los, estudá-los, corrigi-los”. Quer um Brasil sem analfabetos e sem arrivistas, “sem morfina e sem tango”. Nasce daí sua campanha pelo serviço militar, porque “só assim conseguiremos lutar contra o analfabetismo e a desmoralização”. Após, a instrução profissional e a organização do trabalho... Um movimento urgente, salvador, nacional... Nessa visão de conjunto entra, mesmo, um detalhe que não leio sem os olhos molhados: é quando Bilac protesta contra os jornais que, diante de um menino infeliz que matara outro, reclamam castigo. “Que se castigue, como? Metendo-o na Correção? Mandando-o para o Acre? Fuzilando-o?” Tudo em matéria de assistência pública está por fazer. Só se pensa nas casas que tão mal a prestam quando estoura lá dentro um escândalo: “[...] mas logo tudo volta ao mesmo estado... à espera de novo escândalo.” E no pequeno infeliz via um homem que vai se perder “por nossa culpa...” Ah! meu pobre Bilac, quantos se perdem ainda hoje...
Amadeu Amaral, aquele que plantou “só pelo gesto religioso e sereno de plantar”, bateu-se pelo voto secreto. Mas, acima de tudo, vejo nele o interesse pela cultura popular que o levou a mergulhar fundo no estudo das tradições do povo, a analisar o dialeto caipira, a tentar a primeira sociedade brasileira de folclore.
Guilherme de Almeida, o que, todos os 9 de julho, recitava a oração à Última Trincheira, a irredenta, a indomável, junto ao túmulo dos heróis de 1932, o que arrastara o corpo na noite de Cunha dentro da serra e da treva e do medo e da solidão e da angústia e da saudade, o que cantara as treze listas da bandeira da sua Província, esse mesmo soube encontrar a fusão nacional de reminiscências, saudade e esperança, que foi, na voz dos soldados brasileiros em guerra contra o Eixo, a “Canção do Expedicionário”.
OS BRIGUENTOS
Há outro ar de família nos meus predecessores que não devo calar para ser verdadeiro. Esta é uma Cadeira de homens briguentos, ora viva, benza-os Deus! Gonçalves Dias quanto o foi! A tal ponto que a sátira lhe sai desajeitada: a raiva, de tanta e tão forte, atrapalhava. Pobre Olímpia da Costa Gonçalves Dias, quantas iras tiveste de suportar, quantos ciúmes desse marido infiel! Olavo Bilac foi mais longe: bateu-se mais de uma vez em duelo, atracou-se estudante em luta corporal, revoltou-se e comeu feijão podre nas prisões de Floriano Peixoto, andou fugido nas montanhas de Minas. O bom Amadeu, depois de se meter em partidos políticos que sonhavam democratizar o Brasil em tempos em que o jogo se fazia em círculo fechado, depois de ter sido dos primeiros a abrir a luta e dos últimos a abandoná-la na campanha civilista, no fim da vida, não tendo mais com quem fazê-lo, brigou, no seu jeito delicado e decidido, com a Academia. Guilherme de Almeida arrastou o corpo na lama das trincheiras, foi caluniado, compôs hinos marciais, deu muito tiro por amor a São Paulo e, por ódio à ditadura, provou a prisão e o banimento.
TERNURA: A INFÂNCIA
Esses exaltados, que vão da luta individual à coletiva, há o que os amoleça? Há: menino. Gonçalves Dias disse-o em verso, nas lágrimas que chorou pela pequena filha morta, na ternura pela cunhadinha Nhanhã, a futura Sra. Benjamim Constant. Bilac, Amadeu e Guilherme se identificam na criação literária para crianças. Também nesse plano Bilac foi um precursor. Das suas reminiscências tirou a figura patética de Mãe Maria, a preta de carapinha branca ferida na cabeça quando lavava roupa pelo menino de que fora ama... Nunca li essa página sem um amarrar na garganta! No auge da fama Bilac traduziu Juca e Chico, compôs as Poesias Infantis, juntou-se a Coelho Neto na empresa dos Contos Pátrios, a Manuel Bonfim para acompanhar pequenos heróis perdidos Através do Brasil. Ele foi o primeiro, entre nós, a compreender que a Literatura Infantil tem regras próprias, que levaram Andersen a escutar o rouxinol do Imperador da China, Lewis Carroll a viajar com Alice pelo País das Maravilhas, Selma Lagerloff com Nils Holgersson pela Suécia, Saint-Exupéry com O Pequeno Príncipe até a morte. Amadeu Amaral não deixou versos entre os papéis que se encontraram após sua morte; mas entre eles havia numerosas tentativas de prosa para crianças. E o próprio Guilherme, embora não enumerasse os livros infantis na sua bibliografia, garanto-vos que se orgulhava da noite em que subiu ao céu no Sonho de Marina para lavar as estrelas...
PORTUGAL
E todos devemos muito a Portugal.
Gonçalves Dias trouxe de Portugal a “Canção do Exílio”. São Luís e Caxias que viu na meninice ainda eram cidades portuguesas, embora já fossem cidades brasileiras. Português era seu pai. Quando o órfão de 15 anos chega a Coimbra dói-lhe o outono: frios, céus nublados, árvores sem folhas. Passa apertos financeiros, senta-se por esmola à mesa estranha, cisma (a palavra vive ainda hoje na fala do povo), ama e sofre. Vai a Lisboa “ver os feirantes com calças de fundo de couro, tricanas de chapéu desabado com suas fitas e ramos, Manéis de cajado, todos a cantarem o desafio – o fado...” Namora bastante:
“É-me preciso amar a muitas para não doidejar por nenhuma”. Apaixona-se por uma diva do Teatro São Carlos. Sobe pelo Mondego em batéis enfeitados, aclamados pelo povo. Teme morrer sem voltar ao Brasil de cada vez que um companheiro volta. Aprende dança, francês, inglês, italiano e alemão. Gosta da viração da noite, de ver a cidade do Cais do Sodré, de embarcar numa falua para o mar e ouvir a voz do nauta: “Eu era também proscrito como eles.” Constantes acessos de melancolia o jogam de noite “sozinho e desconhecido pelas ruas desertas e silenciosas”. Corre o Minho, Trás-os-Montes, a Galiza que ainda é, até certo ponto, Portugal... Escreve a “Canção do Exílio”.
A geração romântica portuguesa era uma geração de exilados militantes, que voltara a Portugal trazendo nos ombros D. Pedro IV vitorioso. Esses liberais individualistas, nas crises mais graves, vai uni-los o grito de Alexandre Herculano: “Velhos soldados do Duque de Bragança, sois já poucos para defender as suas cinzas, sois ainda sobejos para morrer ao pé delas. Soldados do Mindelo, rodeai o túmulo do Imperador!” Na transição de uma nova era política, cantavam o exílio porque fora amargo – e porque iam acabar com ele. Maria de Lourdes Belchior Pontes analisou quanto foi profunda a marca do desterro em Herculano, tão profunda que no fim da vida o grande solitário substituiu, em seu anarquismo de ressentido, o senso de exclusão da Pátria pelo de exclusão da sociedade. Até que ponto, na temática do Romantismo Brasileiro, se refletiu a presença do exílio, real, preso, magro, nos poetas portugueses do liberalismo?
Em Gonçalves Dias o sentimento da “Canção” corresponde a tal intensidade interior que despoja os versos da folhagem dos vinte anos. Ele não usa adjetivos, reparou mestre Aurélio Buarque de Holanda.
José Guilherme Merquior apontou muito bem a força do subjetivismo lírico como fonte da cristalização poética, que deu eternidade ao poema. Antes e depois dele, a natureza brasileira (lembro- me daquele bom Casimiro de Abreu, tão impregnado dela) se fez e fará presente em muito verso, sem por isso dar-lhe o sentido de uma pungência funda e de um amor não mais adolescente mas ainda puro e sem limites como os da infância. Como pôde o rapaz Gonçalves Dias compô-lo? Ele fica a devê-lo muito a Portugal: há nele um ar natural de colóquio, impossível se o público habitual do adolescente falasse outra língua. Portugal recebe o menino Antônio, devolve o poeta Gonçalves Dias, doutor em leis – e saudades. Anos depois, é de Portugal que lhe vem a consagração que considera definitiva, o louvor de Alexandre Herculano. E em Lisboa lhe brotam do coração malferido outros versos imortais:
Enfim te vejo, enfim posso
curvado a teus pés dizer-te
que não cessei de querer-te
pesar de quanto sofri...
Olavo Bilac foi a Portugal numa viagem de apoteose. Já atravessara 36 vezes o Atlântico quando entra o Tejo para esse instante de glória. Guerra Junqueiro beija-o na testa: “Beijando Bilac na fronte, beijo o Brasil no coração.” É em março de 1916. Portugal acaba de entrar na guerra. A revista Atlântida (quando saberemos ressuscitá-la?) promove-lhe um banquete a que está presente toda a inteligência portuguesa, e os oradores se chamam Lopes de Mendonça, João de Barros, Jaime Cortesão.
Se, para Bilac, Portugal foi a apoteose antes do fim, para Guilherme foi a terra do desterro. O poeta estivera preso na Sala da Capela, onde foi vosso companheiro, Sr. Austregésilo de Athayde. Dali embarcastes numa presiganga, o Pedro I, verdadeira Academia... Era o exílio, sempre exílio, mas doce porque no “meu Portugal” Guilherme não se sentia “exilado” mas “enviado”... O mesmo João de Barros, que saudara Bilac, recebeu-o na Academia de Ciências de Lisboa, de que José Bonifácio fora fundador, e que não hesitara em acolher no seio o exilado brasileiro, alheia, como cabia, às nossas divergências políticas. Não acompanharei o poeta pelas estradas portuguesas, mas me juntarei à sua saudade nos versos do “Poema para Lisboa”:
De repente, nesta minha cidade americana, moça e provisória,
eu te senti, velha e definitiva, Lisboa.
Dentro dos meus olhos, dentro de mim mesmo, que é onde te
guardo, eu te vi inteira e pura, Moirama morena.
E assustei-me, porque não te sabia tão bem guardada assim.
Inteira e pura eu te vi, Lisboa:
– vi o apinhado inquieto de tuas colinas coloridas;
a tortura de tuas ruelas tortuosas;
o braço branco de teu rio enrolado num abraço parado;
o rosa-lilás de tuas olaias chilreadas de pardais;
o voo negro das capas de teus estudantes de boca vermelha;
o brilho de mica das escamas nas canastras sobre o passo de ave
marinha das tuas varinas;
as fachadas de louças das tuas casas acesas de sol;
os dentes cerrados das tuas fadistas mordendo as palavras para
que elas saiam, ensanguentadas da alma...
Não gostaria de falar de mim nesta noite, mas não posso calar sobre Portugal. Cheguei ali duplamente ferido na alma. A mão de Lisboa me berçou, as mãos de Portugal me curaram. Que poderei, deverei, saberei dizer mais? Juntou-se a perfeita naturalidade das coisas simples e eternas – pinheiros junto ao mar, neves na pedra da montanha, calor de castanhas assadas na velha praça, grito de mulheres disputando o peixe – com o jogo mais alto e mais puro da inteligência para tirar ao brasileiro o travo da solidão. Não me senti de outro povo. Bem haja quem lá me quis bem e me compreendeu, escritores, poetas, artistas e sábios, editores e livreiros, estudantes e mestres, homens de jornal como eu, irmãos de infância feitos depois dos cinquenta anos, – entre gente do povo, estevas no campo, mirantes sobre o mar, barros de Rosa Ramalho –, as caras fraternas e ardentes, que não esquecerei. Evoco aquele lindo casal que a morte ainda não separara, meu querido Almada Negreiros, que era um novo Leonardo, e sua mulher Sarah Afonso, a quem Deus guarde por muitos anos, e os outros que ainda encontrei vivos, Fidelino escrevendo lúcido até a morte, a grande paixão de Antônio Sérgio, Mário Chicó de riso tão fino, José Régio tombando ainda tão moço... Evoco, entre tantos grandes velhos, mestre Hernani Cidade, que meus filhos chamam, enternecidos, Avô Hernani, e que espero ver e ouvir ainda aqui e lá muitas vezes, contando Camões e Bocage, histórias do seu povo na guerra e na paz...
A AVENTURA POÉTICA DE GUILHERME
Não foram apenas poetas Gonçalves Dias, Olavo Bilac, Amadeu Amaral, Guilherme de Almeida. Mas foram antes de tudo poetas, acima de tudo poetas. E poetas inovadores, com a inquietação dos abridores de caminho. Com Gonçalves Dias nasce a Poesia romântica brasileira. A Poesia romântica? A própria Poesia brasileira. O Parnasianismo de Bilac era, no seu tempo, uma revolução. Com Amadeu Amaral a forma se desprende do rigor parnasiano. Guilherme, como o escafandrista, se mostra um minuto à superfície das águas para depois mergulhar cada vez mais, à procura dos segredos escondidos – peixes cegos, conchas, abismos, estrelas do mar; seu rastro é sempre fascinador: marcam-no primeiro caravelas e águas vivas, mas quanto mais se aprofunda a própria poeira do oceano...
Pensei em dedicar uma página à aventura humana de Guilherme, do casarão de Campinas, onde nasceu, à casa na colina do Pacaembu, onde cerrou os olhos para sempre. Mas ele próprio escreveu: “Para mim nada existe fora da Poesia.” Tudo nele foi Poesia, até sua Prosa, até seu Jornalismo. Não me acuseis de contradição, porque procurei, antes, demonstrar que ele não fora apenas poeta. Em contraste com Gonçalves Dias, com Olavo Bilac, com Amadeu Amaral, qualquer atividade em que se metesse virava Poesia. Até a heráldica, seu passatempo, sua paixão secreta, lhe põe paquifes de ouro e prata na mão. Poesia eram os corredores mal-assombrados que lhe assustaram a infância e lhe inspiraram uma filosofia de casa moderna brasileira, aberta aos ares e ao sol. Poesia, seus tempos de estudante. E os namoros que transpõe em versos de desencanto mas de esperança. E o grande amor que lhe traz sua mulher, companheira de quase meio século:
E porque existo na terra úmida
da tua sombra, e porque és a única
e porque te amo, é minha a vida!
Poesia quando clama pela revolução literária, e quando, dentro dela, fica fiel a si mesmo. Poesia quando se bate em 32, e quando enfrenta galhardamente o desterro. Poesia até quando advoga: direito é uma forma de poesia, dizia-lhe seu Pai. Poesia quando recorda. E quando profetiza. Quando espera a antemanhã para escrever. Quando se torna um símbolo cívico. Um símbolo literário. Um símbolo humano.
Guilherme passou a infância nas pequenas grandes cidades do interior de São Paulo. Nunca morou na roça, onde nasceram Gonçalves Dias e Amadeu Amaral, e onde Olavo Bilac, menino, viu bichos mansos e árvores velhas, mas também o espetáculo da escravidão: aquele dono de escravos que fizera gravar na espada de tantas revoluções libertárias: Viva la liberdad, aquele feitor que, cansado de tanto bater, tirava férias... Guilherme nunca viveu na fazenda. Minha fazenda de café é minha biblioteca, dizia seu Pai, o jurista, filólogo e escritor Estêvão de Almeida. E D. Angelina de Andrade Almeida, que povoou o lar de nove filhos, concordava com aquela desambição.
Em Rio Claro, “jardim da minha infância”, aprende a ler e escrever no colégio de sua tia Ana de Almeida Barbosa de Campos. Ali faz numa festa de fim de ano o primeiro discurso, escrito pelo pai, decorado pelo menino, que voltava a sê-lo cada vez que o recordava: soube-o de cor a vida inteira. Em Rio Claro vê acender-se a primeira lâmpada elétrica, assiste à passagem do século, com batidas supersticiosas de tambores para que não se acabe o mundo, e estende um dia a mão à primeira namorada, improvisando versinhos de circunstância: “Aperte estes ossos / que um dia serão nossos.”
Mas volta a Campinas. Vem a epidemia de tifo e febre amarela. O vizinho Cantito Bonilha cai doente. O Dr. Estêvão se preocupa. O menino é franzino. Adoecer, para ele, seria morrer. Foram pressentimentos vãos. Guilherme e Cantito são inseparáveis no brinquedo, naquele ano de1903. Guilherme se vira em sonho num quarto fechado, pessoas de branco falando coisas. Como sonhara, aconteceu. E chega a morte... Não veio. Alguma coisa a assusta:quando parece que vem e vence, o menino abre os olhos, sorri, pede água.
Mas esquecera tudo. Nasce de novo, porém aquele branco nas imagens de ontem. É preciso pacientemente recompor a vida, o casarão, o quintal. Reaprender o mundo. Renasceu poeta.
E foi buscar o clima bom de Pouso Alegre, no Ginásio Diocesano. Um dia de dentro dele surgiu o primeiro soneto, pôs o título “A Cruz”. “Comecei duplamente pelo mais difícil – diria septuagenário – a forma, o soneto, e o tema, a morte.” Contava as sílabas nos dedos. Surpreendeu-o o padre-prefeito: “Sim, senhor! Pilhado em flagrante! Fazendo versos em vez de estudar! Que vergonha, menino! Me dê isso!” Tomou e rasgou. Assim a Bilac, um dia, fizera o famigerado Cônego Belmonte. Com uma diferença: que Bilac levou, logo ali, uma dúzia de bolos de palmatória. Guilherme não apanhou, mas chorou. Como Bilac, não desistiu de fazer versos. Fazia-os agora sensuais, adivinhando o amor das mulheres, pelo gosto de escandalizar os padres. Mas esse desaforo não os tornava mais severos: de volta a São Paulo seu Pai – verdadeiro, maior, único mestre – examinou-o e achou as notas generosas. Pôs Guilherme no estudo apertado...
Ainda era ginasiano quando chegou a São Paulo. “Eu era um ginasiano de calças curtas. Que maravilha a tua Estação da Luz! Fui morar nos Campos Elíseos, pertinho do palacete do Elias Chaves. Que emoção a que causavam os teus primeiros bondes elétricos, subindo a ladeira de São João, com aqueles limpa-trilhos que pareciam bigodes negros aparados em brosse.” Nas matinês do Bijou Theatre reencontrava o cinema, que vira pela primeira vez aos onze anos, em exibição de “lanterna mágica com movimento” na Papelaria O Livro Azul. À saída do Radium, na Rua de São Bento, e do Iris, na 15 de Novembro, estreou-se no namoro adolescente.
Sob as arcadas do Largo de São Bento impregnou-se de toda a inquietação do seu tempo. Andamos precisados de outro Gilberto Amado que retome a defesa do bacharel. Era nas Faculdades de Direito que se estudavam as Ciências Sociais – não só as jurídicas – e se estratificavam as vocações literárias.
Diploma debaixo do braço, o jovem Guilherme erra pelo interior paulista, e de lá volta com uma resma de versos a São Paulo, onde não tarda a entrar para a redação do Estado.
Foi no Estado que encontrou um leitor diferente para seus versos. Amadeu Amaral conservou a vida toda o encanto pelos mais moços, e atravessou a tempestade modernista curvando-se para eles com fraternidade e compreensão.
O primeiro livro chamava-se Nós. Em 1917 não falava em guerra. Era simples: a história de um namoro entre um poeta e uma desconhecida. A felicidade que nele se contava era um gênero de felicidade que, ai de nós, parece sempre em vias de desaparecer, e, feliz de gênero humano, jamais desaparecerá, felicidade de pequenas alegrias, pequenas brigas, trocar de mal, trocar de bem, dores de namorado, com gaiolas de canário na janela, jasmineiros no jardim e gerânios na sacada. No Brasil de então, onde os poetas cantavam o Lago de Asfaltite e comparavam sua vida interior a outros fenômenos naturais em alexandrinos torturados, desceu como gota de orvalho aquela cantiga sabiamente despretensiosa.
O nosso ninho, a nossa casa, aquela
despretensiosa água-furtada,
tinha sempre gerânios na sacada
e cortinas de tule na janela.
Dentro, rendas, cristais, flores... Em cada
canto, a mão da mulher amada e bela
punha um riso de graça. Tagarela,
teu canário cantava à minha entrada.
Cantava... E eu te entrevia, à luz incerta,
braços cruzados, muito branca, ao fundo,
no quadro claro da janela aberta.
Vias-me. E então, num súbito tremor,
fechavas a janela para o mundo,
e me abrias os braços para o amor.
Os 35 sonetos da Via Láctea de Bilac eram noturnos, e Amadeu Amaral, em admirável ensaio, mostrou quanto se povoavam de estrelas. Se mestre Othon Moacir Garcia aplicasse a Bilac o mesmo método com que pesquisou a luz e o fogo no lirismo de Gonçalves Dias, encontraria ainda mais presente aquela fascinação que chamou de “noturnismo poético” e que, no bardo maranhense, não excluía a “obsessão matutina”: tudo era natureza. Mas o Guilherme de Nós era diurno e urbano. Em vez de sabiá da mata, o canário da gaiola. Em vez de lhe trazer o bosque, a brisa, a folha, o murmurar das águas, como a Gonçalves Dias, a infância arrasta para ele os barquinhos de papel que soltava “ao longo das sarjetas, na enxurrada”. Sobre o moço Bilac a Via Láctea se desenrolava “como um jorro de lágrimas ardentes”; para o moço Guilherme era outono e as folhas tombavam ao sol poente. Quando Bilac sonha, o luar lhe fala que também quer beijar as faces dela; Guilherme: “Sonhei: cheia de sol, transfigurada...” A bem-amada de Bilac era poetisa (se bem que não tenha querido entrar na Academia...); mas o livro que vem ler é o que ele, o homem, está lendo, embora sejam as cartas dela, da mulher: “E cuido vê-la, plácida, a meu lado / Lendo comigo a página que leio.” Guilherme também recebia cartas (“desato o fio azul que prende o maço / das tuas cartas”), mas quem lê é a namorada: “Lês um romance. Eu te contenplo.” Ele segue, sente, adivinha, “lendo em teus olhos o que lendo estás”. Só numa coisa concordam. O noturno Bilac pergunta: “Por que surge tão cedo a luz do dia?”, embora apenas contemple (em sonho?) a amada, pomba adormecida na música de seus versos, que lhe correm – os versos – o corpo todo; e o diurno Guilherme: “Como a noite era curta! Como o dia / timidamente despontava cedo!”, mas a alcova era tépida e sombria, e apesar de muito soluço entrecortado a medo, era mais fácil subir a escada que descê-la depois...
Disse que os versos de Nós foram uma gota de orvalho. Mas não para toda a gente. Antônio Torres, então muito lido e admirado, desabou contra o baccilus liricus. “Jovens patrícios”, “retardados no seu desenvolvimento d’homens; dessorados naqueles centros do psiquismo superior em que se forjam as complexas armas espirituais, mercê das quais se afirma a dignidade masculina, ou seja a soberania do macho sobre a fêmea de sua espécie”... “dão aos seus contemporâneos o deprimente espetáculo”... “grupo de jovens animais dominados por uma espécie de cio choroso e amulherado”, sem coragem senão para “estrofes plangentes, de timbre obsoleto e acordes infantis, versos sem virilidade, gemidos de emasculados e ais poéticos que estariam ao alcance de qualquer eunuco do Sultão, se aos eunucos fosse dado cometer o desaforo de rimar versos a raparigas”. Qualificava o título (não lhe bastava, meu Deus, um adjetivo, na sua raiva contra o amor humano!) de “melífluo e lambisgóia”. O nosso tempo está oferecendo uma nova dimensão desse amor humano, mas Torres preferia o do cavalo, que ama “simplesmente, animalmente, belamente, como se deve amar quando se tem boa saúde e prazer de viver. Ama e não faz versos.”
Ora, não foi com outra substância que se fizeram imortais Dante, Camões, Petrarca, nem era de outra matéria que naquela mesma hora escreviam, mundo afora, o poeta Fernando Pessoa, o poeta Apollinaire, ou o poeta Rilke, ou o poeta Antonio Machado, ou o poeta Yeats... Na realidade, o amor é o único tema do poeta, e a graduação do lírico para o épico não é senão um ampliar desse tema até os limites mais altos da alma humana. Nenhum poeta de verdade desejará sobre seu túmulo nada além do epitáfio de Stendhal: visse, scrisse, amo.
Para ser inteiramente correto, acrescentarei que não foi apenas a de Antônio Tôrres a opinião publicada nos jornais brasileiros. Foi essa, antes, a exceção. Leio que para mil exemplares houve mil e duzentas críticas, e delas 1.199 favoráveis.
De um dia para outro, o jovem paulista se achou célebre. E não foi uma simples explosão de moda literária. Meio século depois, o jubileu do pequeno grande livro era festejado em todo o país, e ele sobrevivia, na sua fragrância de mato novo florido guardando o segredo do amanhecer. Citarei apenas o testemunho de alguém que foi visitar, então, em seu refúgio de Porto Alegre, o poeta Mário Quintana. Soneto puxa soneto, Mário Quintana recitou todos os sonetos de Nós. Sabia-os de cor. Atravessara com eles muitas noites. Embebera-se neles. E esquecia os seus próprios para repetir, com amor, aqueles versos de amor, em que Antônio Torres identificara “gemidos de eunuco”, “melífluos e lambisgoias”...
Fico – deixas-me velho. Moça e bela,
partes. Estes gerânios encarnados,
que na janela vivem debruçados,
vão morrer debruçados na janela.
E o piano, o teu canário tagarela,
a lâmpada, o divã, os cortinados:
“Que é feito dela” – indagarão coitados!
E os amigos dirão: “Que é feito dela?”
Parte! E se olhando atrás, da extrema curva
da estrada, vires, esbatida e turva,
tremer a alvura dos cabelos meus,
irás pensando, pelo teu caminho,
que essa pobre cabeça de velhinho
é um lenço branco que te diz adeus!
Nós inicia, na poesia de Guilherme, a fase cujo ponto mais alto será o Livro de Horas de Sóror Dolorosa, que o poeta confessava ser o seu predileto. Dir-se-ia que a alma da religiosa portuguesa ressuscitara na garoa paulistana com seus gritos de amor, mas não mais roucos, não mais desesperados, não mais gaguejando no delírio do irrealizado. Eram agora canto e luz, um canto lúcido. “Meu coração fugiu do peito: foi nos meus joelhos que o senti” (“esse coração batendo nos joelhos é das coisas melhores que conheço em poesia”, escreveu Manuel Bandeira). Uma sensibilidade feminina? Não, um ato de criação que encarna o amor num ser feminino para lhe dar “toda” a dimensão humana; e essa dimensão se traduz em música, mas, sobretudo, em imagem. “Como na valva fresca de uma concha / ressoa o mar”, “que tudo fale na canção da monja / que amou demais o seu amor.” O burel é um grande lírio negro. Todo amor não é mais do que um “eu” que transborda. A noite, voluptuosa, entra na carne como um punhal de mel. Sóror Dolorosa procura, como num poço, no olhar de seu Senhor o reflexo da verdade. Acha apenas, trêmula e pensativa como um junco, a mentira do corpo. Os corpos murchos são como as flores de água dos repuxos. A alma gira como heliotrópio acompanhando o rastro do seu próprio sonho. Os olhos são dois mares “cheios de velas quadrangulares”.
Ah! se ao menos no fim dos meus passos incertos,
eu tivesse por cruz os teus braços abertos!
A verdade é que
– a sombra pode ver o corpo que a projeta
mas nunca a luz que a cria.
Mas o imagismo intenso no Livro de Horas não é um beco sem saída. E logo se abre a carícia da sábia música do novo livro, Era Uma Vez...:
– “Conta uma história, bem baixinho,
como um frufru de seda ao luar!
Conta uma história, bem baixinho,
para eu sonhar!”
– Era uma vez Rosa-de-Espinho...
– “Conta uma história leve, leve,
como uma espuma sobre o mar!
Conta uma história leve, leve,
para eu pensar!”
– Era uma vez Branca de Neve...
– “Conta uma história bem sincera,
como uma fonte a soluçar!
Conta uma história bem sincera,
para eu lembrar!”
– Era uma vez A Bela e a Fera...
– “Conta uma história comovida
como um adeus crepuscular!
Conta uma história comovida
Para eu chorar!”
– Era uma vez... a minha vida...
O MODERNISMO: AS CANÇÕES GREGAS
E do mesmo ano de Era Uma Vez a Semana de Arte Moderna.
No modernismo Guilherme de Almeida é um dos chefes e por isso mesmo com o direito de manter o acento próprio. Depois do Livro de Horas e de Era Uma Vez..., trabalhava nas canções gregas, que tiveram o título de A Frauta que Eu Perdi... Duas delas disse-as no meio das vaias da Semana. O último heleno não era Coelho Neto, era Guilherme... Quando os adversários do movimento assinalam a contradição, sai em sua defesa o próprio Mário de Andrade, pela revista Estética. Ronald de Carvalho, também alexandrino, pregava o extermínio da Grécia de idílios postiços, para pôr em seu lugar a de Guilherme, com a “simplicidade sábia das inscrições anônimas”. Quarenta anos depois, atravessando o Mediterrâneo, o que fora antigamente na Estética o rapaz Afonso Arinos Sobrinho e é agora o Chanceler Afonso Arinos de Mello Franco, o de que se recorda é de dois versos de uma dessas “singelas e formosas canções”.
... e sobre ondas brandas
navega o dia de velas brancas...
O MODERNISMO: MEU E RAÇA
A experiência grega enriquece Guilherme e prepara-o, dentro da preocupação nativista comum a quase todas as tendências do Modernismo, para Meu e Raça. Ele próprio define Meu como livro de estampas. Roger Bastide observa que agora sua reação diante da Natureza se tornou amorosa, até erótica.
Estende os teus lábios para este ar puro:
hás de sentir na tua boca um beijo doce.
O imagismo se enriquece de novos requintes. Na noite de breu as árvores são “crespas como rolos de cabelos”, “a lua – espelho partido”, “e a Via Láctea – vidro moído”.
“E o solilóquio dos sapos no brejo – colar de guizos de cascavel.” “E o vento – reza misteriosa.” Mas de repente
as cinco estrelas do Cruzeiro...
(Cruz! credo!)... foi o céu que se benzeu.
O poeta se curva para a terra tropical, não a roça, não a fazenda, mas a selva, as palmeiras, as bananeiras, “os pássaros coloridos e as frutas pintadas / na transpiração abafada da floresta”, a “terra trigueira cheirosa como um fruto”, uma paisagem de luz e sombra de que o homem está ausente, há apenas taturanas escorrendo na relva e arapongas metálicas batendo o bico de bronze, o sol cochilando e tropeçando e caindo redondamente “sob a pateada dos sapos e a vaia dos grilos”. O poeta avança da madrugada para a noite alta, na solidão despovoada. As gentes surgem para compor o painel de Raça. Abre-se o tríptico – portugueses, índios, negros – três sangues gotejando de três crucificados. A cruz navegadora, vermelha, tinge-se de verde na luz indígena, mas “o tronco da árvore nova foi tronco também de escravos quimbundos”. “E da encruzilhada das três estradas sob a minha cruz de estrelas-azuis: / três caminhos se cruzam – um branco, um verde e um preto – três hastes da grande cruz.” O poeta pergunta no verso longo que todos sabemos de cor: “Donatários? Caciques? Zambis? – Qual! Poetas e poetas e poetas e poetas.” E o poema termina com um grito possessivo: “Na minha noite, das minhas estrelas, sobre a minha terra, a minha cruz”, “a minha cruz de estrelas, a minha cruz mal feita, a minha cruz imperfeita, cuja luz / estende no chão da minha terra a minha sombra de braços abertos, enormes, azuis, / a minha sombra que quer abraçá-la e se crucifica sobre ela divinizada pelo Sinal da Santa Cruz...”
A natureza se povoou dos que a conquistaram: monções desceram os rios e plantaram o quarto de hóspede e a pousada, a rede e o cigarro de palha, fazendas e sanfonas, donas de casa preparando quindins e bons-bocados, mastros de São João, a vaca Estrela, o cão Joly, a égua Sultana, e os cavalos passarinheiros...
A rigor não existe, em toda a obra de Guilherme, um verso livre. Manuel Bandeira descobriu o segredo do ritmo de Meu e de Raça: reside todo na força do pentassílabo. O longo respirar se desdobra na sábia música das cinco sílabas, em encadeamento cuja aparência é a da liberdade, mas cuja estrutura remonta às medidas gregas.
O RIO RETOMA O LEITO
Depois de Meu e Raça, o rio retoma o leito. Sem jamais perder o contato pessoal com os companheiros do Modernismo, Guilherme abandona de todo o jogo do trapézio sem rede embaixo de que falava Yeats – não por medo do perigo, pois ninguém sabe tanto os segredos da contorsão e do equilíbrio, mas por um profundo senso interior, o de que a liberdade só existe para o poeta dentro da disciplina, de uma férrea vontade de contenção e de limite.
Volta, mesmo, ao soneto, aos sonetos; e seu último livro publicado foi a coleção de todos os que escreveu. Na primeira página do texto esta definição:
Árdua escalada, custa apenas isto:
quatorze passos da paixão de Cristo
por quatorze degraus da Perfeição.
Para ele o poeta é um ser privilegiado: seu existir já é milagre.
Vencido, exausto, quase morto,
cortei um galho do teu horto
e dele fiz o meu bordão,
Foi minha vista e foi meu tacto:
constantemente foi o pacto
que fez comigo a escuridão.
Pois nem fantasmas, nem torrentes,
nem salteadores, nem serpentes,
prevaleceram no meu chão.
Somente os homens, que me viam
passar sozinho, riam, riam,
riam não sei por que razão.
Mas, certa vez, parei um pouco,
e ouvi gritar: – Aí vem o louco
que leva uma árvore na mão.
E, erguendo o olhar, vi folhas, flores,
pássaros, frutas, luzes, cores...
– Tinha florido o meu bordão.
O ÁLIBI DIANTE DA VIDA
Essa preexcelência do poeta dá-lhe, por outro lado, o álibi diante da vida. Ele está inocente – e por um raciocínio paradoxal, está inocente por não ter participado. É
a ausência que o absolve em vez de condená-lo:
Não estive presente
quando se perpetrou
o crime de viver:
quando os olhos despiram,
quando as mãos se tocaram,
quando a boca mentiu,
quando os corpos tremeram,
quando o sangue correu.
Não estive presente.
Estive fora, longe
do mundo, no meu mundo
pequeno e proibido
que embrulhei e amarrei
com cordéis apertados
de meridianos meus
e de meus paralelos.
Os versos que escrevi
provam que estive ausente.
Eu estou inocente.
A vida libertou-o dos fantasmas que batem à porta: a chuva, o vento, o medo, a treva, o tédio. Não para, é certo, na pesquisa de miglior fabbro. Volta às formas do romanceiro português. Compõe à maneira dos cancioneiros medievais. Incansavelmente disseca e recompõe a rima. Ao mesmo tempo, introduz o haikai na Poesia Brasileira.
Aqui está toda a frescura matinal da infância:
Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se: Agora.
PRIMEIRA SOMBRA: A MOÇA DA FOICE
E súbito o poeta sente a primeira sombra da morte. Não é, como em Gonçalves Dias, a doença; nem, como em Bilac, a tarde; nem, como em Amadeu, a trégua. É, antes, um pensamento doloroso, que confunde o amor e a morte, a alma e o corpo.
Alma que do meu corpo te apartaste,
corpo que de minha alma te partiste,
e que dest’arte em dois me repartiste,
e numa só desdita a ambos juntaste.
Qual vida é igual à morte que inventaste?
Qual morte mais do que tal vida é triste?
Que humano ser tão desumano existe
Que haja sua igualdade em tal contraste?
Ante a razão por que a razão cativa
no próprio cativeiro acha conforto,
e às vezes se abandona, outras se esquiva,
chego a quedar-me ante mim mesmo absorto,
alma sem corpo, que não sei se é viva,
corpo sem alma, que não sei se é morto.
“A Moça da Foice” anuncia sua visita “com olhos de horizonte”.
Vejo a sombra partir-se pelo meio
e pôr-me duas pálpebras na face;
minha boca de sede bebe o seio
de alguma estrela que me amamentasse;
tem um peso de terra o corpo alheio
que há no meu corpo; em meus ouvidos nasce
uma árvore cantando um vento cheio
de céu em cada enlace e desenlace;
em minhas mãos paradas pousam ninhos;
vão os passos de todos os assombros
andando as minhas veias de caminhos;
e há, para o voo aceso numa aurora,
pressentimentos de asas nos meus ombros
– quando a Moça da Foice me namora.
O ENCONTRO COM BRASÍLIA
O encontro do poeta com Brasília vai marcá-lo profundamente. Ele traça na página em branco as palavras misteriosas: agora e aqui, o tempo e o espaço. E começa:
“Agora e aqui é a Encruzilhada Tempo-Espaço...”
É a idéia da cruz que domina. A cidade nasceu da cruz: os inimigos não prevalecerão contra ela, que está no centro dos quatro pontos cardeais, de quatro séculos, de quatro ciclos de ação, o da Descoberta, o do Bandeirismo, o da Independência e o da Integração. E o poeta convoca seu povo de Deus para rogar na ladainha da criação e da esperança, e pede por
Brasília, à tua Cruz que é Presépio também,
a cujos pés a ti, no teu Natal, rogamos:
Rosa dos ventos,
Vela de conquista,
Figura de proa,
Bandeira de popa,
Torre de comando,
Estrela do mareante
Porto do destino,
Âncora de firmeza,
Portal do sertão,
Corda de arco,
Farpa de flecha,
Doutrina na taba,
Foice de desbravamento,
Clareira na selva,
Clarinada no ermo,
Bateia de garimpo,
Diadema de esmeraldas,
Crisol de raças,
Ara da liberdade,
Trono de império,
Barrete frígio,
Toque de alvoradas,
Meta das metas:
Vive por nós!
Altas horas da madrugada, terminado o poema, Guilherme acorda sua mulher para mostrá-lo. Leva-o, depois, ao Presidente Juscelino Kubitscheck. E diz a um repórter:
– Este poema é a minha obra-prima. Considero-o um milagre: alguém o fez para mim. Com ele, me supero. Minha carreira de poeta está encerrada: não mais escreverei. Este será o meu último poema.
Inúteis palavras! O demônio da renovação atormentava o poeta. São de 1961 os poemas de Rua, de 1965 os de Rosamor. E deixou pronto o derradeiro livro de poemas, sob o signo do concretismo.
A RUA E A ROSA
A rua é dos temas permanentes de Guilherme. Apesar de ter escrito: “Detesto a rua. Eu tenho horror do alinhamento”, não era na rua que passavam os namorados de Nós? A nostalgia rural ajuda-o a compor, em Raça, um panorama do Brasil, mas sua infância é dos casarões paulistas, não das manhãs de roça. Guilherme não é do campo, é da cidade, ou, melhor, da rua, da rua paulistana, amanhecer, manhã, meio-dia, tarde, crepúsculo, noite, madrugada. Seu espírito clássico recusa a enumeração caótica da natureza campestre, ama a disciplina dos quarteirões alinhados. Há um segredo por dentro da sua visão da cidade: ele a contempla com a minúcia apaixonada de um fotógrafo que fixa a mesma paisagem minuto a minuto. Até seus companheiros são urbanos, não os grandes cães de caça ou de guarda, mas pequeninos deuses, um por sua vez, sucessivos mas não múltiplos, e o pequeno pequinês Ling-Ling de Pinerolo não lhe sairá de perto quando se anunciar a visita final.
A rosa é seu símbolo permanente: a perfeição detalhada, a “pura contradição”. Em face dela, a interrogação da morte volta em Rosamor:
Quem deu de beber
à rosa no vaso?
Não pode ela, acaso,
gostar de morrer?
O FIM
O poeta adoece.
Junho e já não pode mais fazer e soltar balões na noite de São João.É a noite maior que vem chegando. Já não pode mais ler, já não pode mais escrever. Não quer sobreviver a si mesmo. Já não levará a cabo a história da língua portuguesa que tanto sonhara, uma história em verso. Já não receberá o título de Poeta Laureado de São Paulo.“Se eu tiver que morrer, que seja em casa.”
E há, para o vôo aceso numa aurora,
pressentimentos de asa nos meus ombros
– quando a Moça da Foice me namora.
Deixem-me descansar. Já fiz o que tinha a fazer.
“Sem mim / Em mim / Fim”, seria um dos seus últimos poemas...
A 9 de julho ainda quer abraçar a bandeira paulista, hasteá-la, como todos os anos, sobre as giestas louras e os ibiscos vermelhos. Já não pode fazê-lo.
Na madrugada de 11, cessa toda a luta.
O POETA-UIRAPURU
Dizem na Amazônia que há dois destinos diferentes de pássaro: o do xexéu, que, por falta de voz própria, finge o canto alheio, e se adapta a todas as inovações; e o do uirapuru, sempre novo, que nenhum dos imitados pelo xexéu consegue, por sua vez, imitar: todos ouvem em silêncio. O destino de Guilherme de Almeida foi o do uirapuru. A inquietação criadora leva-o à procura de formas sempre diversas. Ele não hesita em meter-se pela escuridão dos tempos até os antigos modelos portugueses, adaptar o haikai ou entrar, com jeito familiar de quem nunca fizera outra coisa, pelos jogos verbais do Concretismo... A verdade é que sempre teve a nota própria, única, fresca, que embevece os demais pássaros e desfaz as rivalidades...
Que contraste! Gonçalves Dias, órfão de pai, dependendo das generosidades da madrasta, encontrando na mãe as doçuras do afeto mas também as nascentes do preconceito. Bilac expulso de casa pelo pai, debaixo de cujo colchão, ao morrer, vão encontrar, puído de tanta leitura oculta, o livro de versos do filho. Amadeu convocado, rapaz, para as fainas humildes de um jornalismo doméstico sem glória, embora solidário e puro. E Guilherme cercado da confiança paterna, da admiração de irmãos como o poeta Tácito e o historiador Antônio Joaquim, juízes capazes mas enternecidos; Guilherme desde menino príncipe encantado – e encantador. Sua glória, desde que nasce, é tranquila. Vicente de Carvalho escolhe sonetos com ele. Amadeu escreve: “Quem estréia por este jeito, até onde irá?” “Começa vencendo: entra na carreira literária como um triunfador”, diz Medeiros e Albuquerque. E o coro segue, por vezes contraditório. Sobre A Dança das Horas: Menotti – “Nada é artificial”; Humberto de Campos;
É o poeta do asfalto, da luz elétrica, do veludo, das joias, das tapeçarias, dos cristais, do luxo mundano, enfim um poeta aristocrático... É uma poesia nova, espartilhada, de meias de seda e sapatos minúsculos, que usa morfina e dorme, alta madrugada, entre volutas de perfumes orientais...
Mário de Moraes Andrade (ainda era o nome literário de Mário): “Descobre-se no seu autor um poeta do sentimento...”; Lourenço Filho: “Guilherme tem a moderna concepção naturalística da Arte...”; Tristão de Athayde: “O livro do Sr. Guilherme de Almeida é todo nervos. Sua poesia é sutil, esguia, fugaz.”
Mário de Andrade lhe dedica um exemplar da Pauliceia Desvairada, em 1922: “A Guilherme de Almeida, este sim o maior poeta vivo do Brasil.” E escreve no último artigo: “A perfeição às vezes miraculosa da fatura”... “a glória voluptuosa”... “o grande artista do verso medido”...
Cecília Meireles dizia ter buscado na simil-rima de Guilherme as assonâncias do seu Retrato e proclamava-o “um verdadeiro poeta”.
Contarei da minha emoção ao recolher, na biblioteca da Academia, os volumes de Toda a Poesia de Guilherme. No cartão de leitor estava, mais de uma vez, um único nome, mas esse era o de Manuel Bandeira. Um dos maiores prazeres que Manuel teve em sua vida de poeta – está no Itinerário de Pasárgada – foi a atenção com que Guilherme ouviu “Berimbau” quando o disse pela primeira vez: “[...] à proporção que ia recitando, via nos olhos de Guilherme que nada lhe escapava dos efeitos que eu ali pusera, por mínimo que fosse.”
Dir-se-á que Manuel era companheiro de Guilherme no Modernismo e nesta Casa, alguns anos de idade apenas de diferença. Para quem conheceu a independência quase feroz das opiniões de Manuel esse argumento não vale. Foi uma admiração da vida toda.
Quando, em 1924, Prudente de Morais, neto, quis conversar com Alberto de Oliveira sobre os poetas modernistas, ouviu do velho parnasiano que gostava muito de alguns: “O maior deles é Guilherme de Almeida. Considero “A Minha Salomé” a mais bela poesia publicada nestes últimos anos. E como é bem feito e expressivo aquele “Pião”!”
Passa-se o tempo. E quando, em 1959, é escolhido Príncipe dos Poetas Brasileiros, figuram entre seus eleitores Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. É preciso mais? E ambos não se limitaram a votar, declararam o voto. Manuel cabalou mesmo para Guilherme o voto difícil de Sérgio Buarque de Holanda, e ofertou-lhe esta balada:
Ó Poesia! Ó mãe moribunda!”
Assim clamou Banville um dia
Na Europa, terra sem segunda
Da grande, da nobre poesia.
Aqui ficara sem sentido
Esse grito de descoragem:
Vives, Guilher
me, e eu, comovido,
Ponho a teus pés minha homenagem.
Toda a alma humana, da mais funda
Mágoa à mais etérea alegria,
Vibra, ora grave, ora jucunda,
Em teus poemas de alta mestria.
Por isso, e porque sempre hás tido
Em captar as vozes da aragem
Mais sutil o mais fino ouvido,
Ponho a teus pés minha homenagem.
Se no artesanato se funda
Aquela apurada euritmia
Da arte melhor e mais fecunda,
Há que ver na longa teoria
De teus livros, no tom subido
De tua lírica mensagem
Il miglior fabbro como és tido:
Ponho a teus pés minha homenagem.
Oferta
– Príncipe do verso medido
Ou livre, e da rima, e da imagem,
Irmão admirado e querido,
Ponho a teus pés minha homenagem.
A AÇÃO: O MODERNISMO
Esse alto poeta era um homem de ação. Participou de duas revoluções: uma literária, o Modernismo, outra cívica, o Movimento de 1932.
Sua contribuição ao Modernismo não se mede apenas pela obra poética. Ele é um dos fundadores de Klaxon, cuja capa improvisa apanhando de um cartaz na tipografia o A maiúsculo com que se anunciava a Aída. Aparece um único assinante, um juiz do interior, que, horrorizado diante da heresia modernista, logo devolve a assinatura, mas é condenado a receber a revista enquanto durar... A influência de Klaxon, com dez números apenas, foi decisiva. Mudando-se para o Rio, Guilherme continua a agir. Sua casa, numa rua de Copacabana ainda areenta, é um dos centros da inteligência inquieta nos idos de 1923: a salvação do Brasil pela Literatura...
Em 1925 Guilherme decide: levará o novo Evangelho do Rio Grande do Sul ao extremo Norte. Em Pelotas e Porto Alegre é a apoteose. Lá descobre dois ou três rapazes... Um deles, Augusto Meyer, tem 21 anos... Em Recife, Joaquim Inojosa e seus amigos o recebem num rumor forte. É certo que Gilberto Freyre, Jorge de Lima, José Lins do Rego, andam por outros caminhos. Mas o movimento fica a dever-lhe uma conversão formidável: a de Ascenso Ferreira. E a viagem prossegue até Fortaleza, onde se interrompe: no Maranhão os revoltosos – de outra revolta, a política – ameaçam São Luís.
A AÇÃO: A REVOLUÇÃO DE 1932
O clima de 1932 colheu Guilherme de Almeida e fez do poeta lírico um voluntário da Revolução, do advogado um soldado raso nas trincheiras da serra. Ninguém em São Paulo se excluía. A grande província acordava dos sofrimentos imbuída do espírito de missão, a missão da liberdade, da Constituição, do estado de direito, da legalidade democrática, missão nacional que encontrava no amor-próprio coletivo ferido o sentimento de que se nutria. Dizer que a rebeldia era separatista é ignorar que seu objetivo era brasileiro e visava ao Brasil todo. A verdade é que, se Euclides de Figueiredo não tem, para acentuar esse ecumenismo do movimento, esperado pelo explodir das conspirações locais, o avanço das tropas teria alcançado o Rio e, dentro da tradição, não haveria sangue: o Governo cairia. É assim o nosso caráter, segundo a lição da história: quando o fermento revolucionário se generaliza, os comandos se convertem e mudam o grupo dirigente; quando, porém, este crê em si mesmo e resiste, vence sempre na luta armada.
Os chefes militares e civis que cercaram São Paulo não queriam voltar atrás na revisão de estruturas que se iniciara e o destino não permitiu completar. Mas o povo, o voluntariado que em Minas, no Sul e no Norte formou batalhões, movia-se também por amor a São Paulo, que pensava querer separar-se. Sim, São Paulo, foi por amor de ti que acudiram a atacar-te, como é por ciúme que se atira na namorada... Era impossível permitir que São Paulo se separasse do Brasil, porque se São Paulo sem o Brasil não é mais São Paulo, o Brasil sem São Paulo não é mais Brasil. O moço Arnon de Mello tinha razão num livro que marcou época na hora crucial, quando o vento da derrota levava muitos ao desvario separatista, outros à obsessão revanchista; São Paulo venceu na sua ideia de missão. Tornou explícita a aspiração nacional de liberdade, incontornável e incontrolável. Mas não é a liberdade o nosso ideal único, também a mudança. É da fusão desses dois instintos supremos – o da liberdade e o da mudança – que resulta a unidade brasileira. Toda vez que liberdade e mudança se encontram, a consciência nacional se unifica, o país sobe um degrau, e o primeiro deles foi a Independência. Oh! senhores, deem-me liberdade com mudança, deem-me mudança com liberdade, não me deem uma sem outra, não me deem liberdade sem mudança, que morre estéril na imobilidade, não me deem mudança sem liberdade, que mata sufocando no universo concentracionário.
AMOR E TRADUÇÃO
Esse poeta de amor é o amor que o governa. Não ama apenas a mulher, o filho, os netos, as sombras do lar antigo, dos pais à velha aia imigrante, e tudo o que é seu: os pequenos cães, a casa, a rua, a cidade, a província, o país. Seus versos são para ele “dulcíssimos tiranos”, sabe-os todos de cor. É capaz de numa só noite de domingo compor uma antologia com os 164 poemas que lhe acodem “de uma assentada e só de memória”, “sem apelo, santificadamente”. É ainda o amor que inspira suas traduções: “[...] os versos que passou para o português – sempre os soube de cor e à força de dizê-los e redizê-los, citá-los e recitá-los, acabou por se surpreender ouvindo-os de si mesmo, em sua língua mesma”. Entre o ideal de Henri Brémond, de uma poesia tão pura na essência do inefável que entreabrisse o reino do Espírito, o de Charles du Bos, que a desejava capaz de resistir à tradução em prosa arrítmica, e o de Saint-John Perse, que recorda as meninas de uma ilhazinha da Polinésia, incapazes de compreender uma só linha do que recitavam mas dizendo Racine sem traí-lo, embaladas pela música, Guilherme encontrou o caminho da “recomposição”. E fê-lo com a paciência voluntária a recomeçada que só o amor inspira: oito anos levou na “transfusão” – era a palavra que terminara por preferir – depois de passar pelo modesto “traduzir” e pelo ousado “transcrever” – de 21 poemas de Baudelaire. E sem amor fora impossível transfundir em português o Gitanjali de Tagore!
POR UMA DEFINIÇÃO PESSOAL DE POESIA
Senhores,
O veio de mais alta poesia, que de Gonçalves Dias a Guilherme de Almeida correu incontaminado e perene, bem sei quanto é em mim subterrâneo e fugidio. Sou um poeta que depende dos acasos da inspiração, ainda faz sonetos e não ousa, para tristeza sua, se arriscar nas aventuras experimentalistas que inveja nos outros.
Um poeta que faz sonetos... O soneto foi uma das cabeças de turco do Modernismo e continuou cabeça de turco até hoje. Tomarei apenas uma citação, a de mestre Cassiano Ricardo, pelo inapelável da sentença: “Os que hoje dispõem de tempo para fazer um soneto negam a sua época. O soneto seria uma limitação num momento em que venceu o ilimitado.”
Enfrentemos o problema. Que é soneto?
Quatorze versos e uma alma. Creio que não mais. O mesmo pode-se dizer de qualquer poema, excetuado o limite numérico. Mas por que tem ele sobrevivido no tempo? Por que toda a moderna poesia espanhola nasce sob o signo de Góngora, isto é, do soneto? Por que uma geração inteira do Pós-Modernismo Brasileiro opta pelo soneto? Por que são sonetos os últimos versos de Jorge de Lima e Manuel Bandeira? Por que contra ele se iram os novos formalistas? Por que sobrevive?
Não sei se tinha razão aquele artista que sustentava ser o poeta um só, e cada um de nós expressões dele, maiores ou menores. Sei que nenhuma forma oferece tanto risco de facilidade e tanto exercício de síntese. É como se na redação o editor da noite me dissesse: “Você tem quatorze linhas para copidescar a mais importante notícia do dia”, e nelas, por uma sabedoria técnica consciente, soubesse contar com garra tudo o que conta. Assim o velho Alberto Ramos, que ainda conheci na antiga Agência Havas, queria os telegramas enviados às redações: perfeitos – como um soneto...
Lembro-me de Thomas Hardy no leito de morte, quando não conseguia ouvir ler mais prosa, só verso – e pouco, porém sempre e de novo, acordava no meio da noite, queria verso, e pedia que lhe lessem sonetos, poemas curtos...Mas existirão formas fixas em poesia? Karl Vossler, que entendia do riscado, respondia que não. Cada poema tem seu próprio movimento interior e se apresenta ao poeta com uma estrutura própria e, por assim dizer, inevitável. Valéry (que não é dos meus santos, mas também – e quanto! – entendia do riscado) falou que os deuses dão de graça o primeiro verso, cabe à gente modelar o segundo, suar por ele para que não seja indigno do outro, seu primogênito sobrenatural. “Toutes les formes sont bonnes”, dizia Apollinaire, já depois de inventar os caligramas.
Na luta contra o soneto, o Modernismo travava uma batalha errada, ou, pelo menos, uma batalha certa no lugar errado. Não era o soneto, era toda a poesia, que em vez do ato de criação se tornara hábito, caindo naquela fossa que mestre Walter de La Mare diagnosticou: “The writing of verse easily becomes a dangerous habit.” E não só hábito, hábito pontilhado de regras minuciosas, que Manuel Bandeira levou no riso:
Clame a saparia
em críticas céticas,
não há mais poesia,
mas há artes poéticas.
Dessas artes poéticas que tentavam substituir a Poesia, que estavam equivocadamente no lugar dela (e ressalvo as exceções que levaram Fernando Góes a levantar a tese de que o Pré-Modernismo não foi um anti-modernismo, mas uma preparação para ele), dessas artes poéticas o soneto – concedo-o sem relutância – se tornou símbolo. Mas acrescento que há uma beleza, um heroísmo, um sacrifício, uma persistência, uma teimosia, mais que isso, uma constância criadora, no mecanismo automático com que, tomado seu cafezinho, o poeta passadista se sentava à sombra das mangueiras em flor para escrever seu sonetinho. Tudo dependia do que tinha dentro de si: esse é o segredo que as escolas fingem esconder. Mas, sobretudo, louvo o ato de fé na Poesia, num país ainda sem universidade, numa estrutura em que a Literatura funcionava como ornamento, portanto dispensável: Amadeu Amaral teve de escrever mais de um ensaio para demonstrar o truísmo de que a Poesia é necessária.
Será mesmo necessária? Será mesmo necessária a simples poesia lírica? Não será antes alienada e alienante, ópio da classe ociosa? Talvez devesse responder, para encurtar conversa, com o fato evidentíssimo de nos encontrar-mos aqui e nesta noite.
Que mistério é esse, senhores, que força estranha é essa, que prevalece no mundo mais hostil? A que necessidade profunda corresponde que Baudelaire pôde escrever, do fundo do golfo, que o homem pode passar dois dias sem comer, mas não pode passar um só sem poesia? Penso no medo de Rilke de que Tolstoi lhe perguntasse o que fazia, porque teria que responder: “Poesia”. Sim, não era engenheiro, nem lavrador, nem operário, nem reconstrutor do mundo e sonhador de mundos novos, mas poeta, poeta lírico, nada mais. E carecia ser mais? Pois a Poesia, por si só, não constrói novas formas de vida, mas sem ela novas formas de vida não se constroem. Rilke, aquele a quem a Desconhecida dissera: – “Vai, procura a ponte com duas torres nas extremidades, e desce sob ela, e toma teu coração, e canta...”, no fundo bem o sabia.
Resistirei para não falar de mim. Faço sonetos como quem prefere a lagoa por medo do mar alto...
Aprendi, entretanto, terrivelmente (como de si próprio escreveu Ungaretti num dos seus últimos dias) que só a Poesia pode recuperar o homem. Creio na Poesia; creio que o lirismo corresponde a um imperativo profundo do ser humano; creio que numa sociedade onde a Cultura seja livre há sempre lugar para o poeta; creio que na medida em que a Cultura seja universal e atinja a todos os homens há para ele, mais que a possibilidade, a necessidade de profissionalizar-se. Por isso, Ezra Pound pôde falar numa profissionalização da Poesia.
Escrevendo sobre os versos de Luís Filipe Vivanco, outro grande espanhol, José Luís Aranguren, observa que para ele o essencial em Poesia é a autenticidade da vida. Para ele há [...] fundamentalmente dois modos de viver: o frívolo, superficial, cidadão, sociável, romântico, idealista, intemporal, livresco ou intelectual, em frente dele outro, profundo, camponês, retirado, anti-romântico, conjugal e familiar, realista, envelhecente, apreendido no trabalho nada literário e na experiência quotidiana da existência.
E acrescenta que essa explanação da vida simples se faz através destes elementos essenciais: o pai, o campo, a paisagem, a casa, o casamento, a mulher, os filhos, a profissão, a entrega à realidade, Deus: o pai e sua exemplaridade moral, sua permanência na autenticidade; o campo como âmbito da existência verdadeira e a paisagem como espelho da intimidade; a casa como recinto dentro do qual se desenvolve a vida; o casamento, a mulher, os filhos; a profissão como pedra de toque de seriedade; a abertura às coisas com que se faz a vida, a entrega à realidade. E, por fim, como sustentação e coroamento de tudo isto, Deus. Nesse ideal me encontro profundamente.
Acrescentarei outras palavras alheias, em que também me revejo. Pouco tempo antes de morrer, Dylan Thomas, o grande lírico inglês que tinha a minha idade, respondia a um correspondente: “Poesia é o que me faz rir ou chorar ou bocejar, o que faz minhas unhas dos pés beliscar, o que me faz querer fazer isto ou aquilo ou nada, e é tudo.”
Talvez se juntasse esses dois pensamentos, a âncora e a liberdade, encontrasse minha definição pessoal de Poesia, para com ela penetrar na companhia dos grandes poetas cuja memória protege a Cadeira 15.
A LIÇÃO DA VIDA
A liberdade e a âncora... Foi a vida que me transformou de poeta bissexto em poeta contumaz. Ela me devolveu em verso as coroas de areia e as canoas no rio, meu carneiro no quintal, o cavalo pequeno galopando na chapada, meu Pai, severo, minha Mãe, paciente. E os olhos puros com que um dia vi adolescente aquela que é hoje minha Mulher. E tantas terras que vivi e amei: mirantes de São Luís, campos de Campo Maior, Teresina e São José das Flores debruçadas no Parnaíba, montanha de Minas, Rua de São Paulo, frios de Curitiba, igrejas de Salvador, céus de Portugal. A poesia me dá de novo uma existência inteira, até mesmo os filhos que perdi, e entrego a Deus, a quem rezo ainda hoje o Padre Nosso que aprendi pequeno, não só pelos que me restam como pelos outros, os outros meninos deste meu País.
AS SOMBRAS E O COMPADRIO
Senhores acadêmicos,
Caminhamos entre sombras. Quanto o sei! Nesta noite e nesta sala, não posso esquecer meu amigo e meu mestre Félix Pacheco, a quem devo meu primeiro emprego, e cuja mão foi para mim fonte de bênçãos. Mas recordo também Laudelino Freire e os que ele reuniu em torno do meu nome de quase adolescente, quando lhe parecia que o sucessor de Félix Pacheco nesta casa devia ser eu, “menino de ouro de quem os velhos gostam”, escrevia Rodrigo Octavio. Não precisou Afrânio Peixoto me arrancar o botão do paletó que agarrava docemente para me convencer de que devia desistir a fim de não perturbar a eleição de Pedro Calmon. Faz 35 anos! Quantas mãos amadas que se foram! As mãos de Roquette-Pinto, mãos de pianistas, Roquette com aquele seu jeito meio curvo que parecia um donaire e já era a doença, a luta para preservar pelo hábito criativo da gravura os dedos que se imobilizavam, a última conversa, o desnível entre o campo e a cidade pode acabar com o Brasil. Vitor Viana, para quem fui uma tarde pedir inutilmente o voto de Clóvis Bevilacqua, em cuja casa uma simpática desordem bem nordestina foi tantas vezes caricaturada mas onde nunca faltou acolhida para os moços.João Ribeiro, a cuja mesa, levado por seu filho Joaquim, tantas vezes me sentei rapaz, e de onde o vi, comprimido pelo desgarrado dos debates, ameaçar inutilmente levantar-se... Fui amigo de Humberto de Campos. O que devo, não apenas como leitor, como ser humano, a Guimarães Rosa! Ele me disse no derradeiro encontro, sob as árvores da Rua Dona Mariana: queria que eu fosse derrotado da vez em que com tanto acerto escolhestes Joraci Camargo para poder votar em mim. Assis Chateaubriand me deu a primeira viagem a Europa. De dois dos vossos mortos ouvi mais de uma vez esta palavra: “filho”: e mais não direi de Gilberto Amado e Manuel Bandeira e do amor que lhes tinha (e tenho) senão que se hoje aqui me vedes, vencendo uma timidez que tanto se disfarça, é na continuidade da promessa que lhes fiz, e a vós, Sr. Peregrino Júnior, e a vós, Sr. Afonso Arinos, numa tarde, na casa que na hora entre todas amarga meu querido amigo José de Magalhães Pinto nos emprestou em frente ao mar do Leblon, de candidatar-me enquanto fossem vivos para, se esta Casa me quisesse, terem ainda o gosto de me verem sentar-me a seu lado. Ribeiro Couto nunca me chamou de filho, mas de irmão mais moço. Invocava personagem que eu criara no antigo Suplemento Juvenil de Adolfo Aizen: “Goiabinha de antigamente / Hoje este nome pouco vai / Com quem de tanto filho é pai! / Envia-te saudades / o Ausente.” Por vezes lembrava a condição de padrinho e compadre ou optava por esta última, para gáudio meu, que sou do compadresco. Ser compadre sempre foi, graças a Deus, coisa importante no Brasil, país de homens e mulheres cordiais, segundo a teoria do próprio Couto (e estendo expressamente a enumeração às mulheres para evitar as interpretações restritivas), homens e mulheres cordiais a quem a condição humana importa antes de tudo. Compadres eram os malungos, viajantes forçados dos mesmos navios da África, cuja solidariedade suavizava a escravidão. E quantas vezes o pedido do compadre impediu a punição do escravo! O Teatro, a Ficção, a Poesia do Romantismo, bem mais realistas por vezes que os de hoje, estão cheios, nas comédias de Martins Pena, nos romances e contos de Alencar e Macedo, na poesia rústica de um Joaquim Serra, da figura do compadre, cuja presença, no passado brasileiro, anda a desafiar um ensaísta que o reabilite. O compadre em Manuel Antônio de Almeida, em Machado de Assis, que tema! O compadre na história da Política Brasileira... Só se escolhia compadre por afinidades profundas... Ainda agora, proclamo, a afetividade influiu na nossa escolha. É que não sou senão a soma dos meus amigos, e foi ela, decerto, que vistes em mim. Mas a instituição do compadrio me libertou do embaraço da indicação do orador que me receberia, e que a generosidade do vosso Presidente, a quem deixo um apelo para que de futuro se restrinja à letra estrita do regimento, que lhe dá poderes para escolha sem consulta ao recém-chegado, desejou fazer, como é do seu hábito gentil, ouvindo o novo eleito. Quem sugerir? Aqui estavam, entre tantos amigos empenhados no pleito, meu tão antigo companheiro na vida literária do Rio, R. Magalhães Júnior, participante comigo do grupo em que figuravam – cito apenas dois nomes que a Academia não teve tempo de acolher – Joaquim Ribeiro e Dante Costa; meu tão antigo companheiro de jornal, Elmano Cardim, que conheci (lembrar-se-á ele?) mal fizera 16 anos, no Dia de Reis de 1931, minha primeira tarde de repórter, no velho salão do Jornal do Commercio; Deolindo Couto, cujo pai foi amigo e colega de meu pai, e, fosse ele o orador, seria ainda de maior festa para os dois, no céu, esta noite; Josué Montello, o imaginário de nossa bem amada São Luís, meu conterrâneo mais ilustre, que tanto me desejou entre vós; Jorge Amado, o romancista da minha geração, cujo sangue vai cruzar com o meu para alegria de nós ambos. E por que não pedir a Alceu Amoroso Lima, que levei para o Jornal do Brasil, onde sua coluna é advertência e esperança, a bênção de bondade que nunca me faltou? Olhava em torno de mim e hesitava. Cada nome que me acudia era caro ao meu coração. Não via eleitores e não-eleitores: só amigos. E por que não quebrar a tradição e pedir a José Américo de Almeida sua acolhida de patriarca, mago e profeta dos sertões secos, a quem nunca perco a esperança de dar o voto que me arrancaram das mãos em 1937?... O compadresco me salvou. Tinha nesta casa dois compadres, dois irmãos, cuja mão pousara sobre a cabeça de meus filhos em frente à hóstia do sacrifício, nos sacramentos de Deus. Sou muito grato à Academia por acrescentar à gentileza da eleição a da escolha do orador e do paraninfo desta noite. Na voz do meu compadre Peregrino Júnior vou encontrar, bem sei, o eco de outras que nos foram caras, a de Ribeiro Couto, a de Manuel Bandeira, a de Gilberto Amado; nas mãos do meu compadre Afonso Arinos, um tremor refletirá as de Couto, Manuel, Gilberto, as dos nossos queridos Luís Camilo, Lúcia, Octavio, Rodrigo, mas sobretudo as finas, as nervosas mãos do príncipe curvado para a sorte do povo, mãos que falavam, do meu herói de romance, do brasileiro entre todos mais possuído do senso desatinado da liberdade e do amor inexaurível da justiça que conheci, e sabeis que falo de Virgílio Alvim de Mello Franco. Se as balas assassinas não lhe tivessem rasgado as entranhas, não penaríamos de certo vendo entre nós tantos eclipses da Democracia, que ele sonhava estruturada em partidos orgânicos, com raízes mergulhadas no povo.
ASPIRAÇÕES À UNIDADE
Não me aproximo de vós sem gratidão nem timidez, mas devo confessar que ao bater à vossa porta dois sentimentos desejava afirmar, e quando falo em sentimentos é porque penso que certas convicções de tal forma se enraízam em nós que passam a fazer parte mais do que da nossa própria sensibilidade, da nossa alma. Um deles era a consciência da unidade do Brasil; o segundo, o da unidade de espírito. Importava-me que a Cadeira de Gonçalves Dias, fundada por um carioca, enobrecida sucessivamente por dois paulistas, viesse ter a mãos maranhenses, menos por um provincianismo que não oculto do que para exaltar, no círculo que assim se fechava, a ideia do ritmo, do ciclo, da continuidade, da forma que se volta sobre si mesma, mas persiste. Queria que a poetas que, eventualmente, fizeram Jornalismo, Novela, Teatro, Ciência, Folclore, Etnografia, Linguística, Política, e se curvaram com amor para as crianças, sucedesse um jornalista, antes de tudo jornalista, acima de tudo jornalista, a quem as pungências do destino reabriram a poesia e a ficção como novos leitos onde as dores e as alegrias da vida se contivessem, porque toda criação é bela em si mesma e encerra um gesto de luta do homem contra a morte. Os mesmos brejos, luares, sobrados de azulejo, água barrenta de rio, baía larga e doce, várzeas e palmeiras, que viu menino Gonçalves Dias, vi-os menino eu; e meu sonho é seu voto, levem-me para o convés na hora entre todas iniludível, deixem-me ver as areias da costa, as praias brancas a desdobrar-se sem fim sob as barreiras, o perfil dos telhados velhos no casario... Mas brejos, luares, sobrados, água de rio, mar quieto, várzeas e palmeiras, também velaram pela infância de Olavo Bilac, de Amadeu Amaral, de Guilherme de Almeida. Nossas almas se tocam no amor do mesmo chão brasileiro. Nossa Pátria é uma só, una, indivisível, eterna. Quando o guerreiro vencido chorava por amor de um triste velho, éramos nós; nós quando recaía sobre ele a maldição ou quando os gritos, as imprecações profundas soavam. Qualquer de nós trocaria tudo o que escreveu pela canção da mais singela simplicidade: “Minha terra tem palmeiras / onde canta o sabiá.” Quando Bilac lhe diz, a essa terra: “Pátria, latejo em ti, no teu lenho, por onde circulo”, sou eu que falo por sua voz. A tapera que Amadeu viu morrendo, e onde de vida restavam somente capim, guaxima, joazeiro, e caminhavam apenas no teto a desabar, “nos pequeninos pés, turturinando, as pombas”, corri mal-assombrado fugindo dela menino nas terras do Olho d’água da Prata no Vale do Parnaíba... E dela é que nasceu a cidade de que fala Guilherme: “[...] e das ruínas da velha tapera de taipa e sapé, a cidade que surge branca de cal como assombração. / E, aí, nas tardes pintadas da cor de baú – azul celeste, rosa e verde-mar, a procissão / A procissão! Raça processional! São Bom Jesus de Pirapora! Nossa Senhora da Aparecida! / Quitandeiras com tabuleiros, virgens, anjos, irmãos, romeiros, promessas, milagres, subida e descida / com calvários de terra vermelha onde a igreja acaçapada se ajoelha crucificada entre dois lampiões; / ladrões de beijos nas esquinas das morenas de jambo entre rótulas sob os beirais dos casarões / de azulejos e bolas de louça, com semprevivas nos jardins, jasmins nos caramanchões, / caramujos e conchas nas cascatas tristes que cantam modinhas nos serões brasileiros...” Há muitos Brasis, mas o Brasil é um só.
Sim, nossa Pátria é uma só, una, indivisível, eterna: a do maranhense de Caxias, do carioca da Rua da Vala, do paulista de Capivari, do paulista de Campinas, do maranhense de São Luís. A mesma, predestinada para a liberdade, para a Cultura e para a paz entre os homens, “visão do paraíso”.
Mas acima das formas terrenas que nos cercam e que amo como Gonçalves Dias, Olavo Bilac, Amadeu Amaral, Guilherme de Almeida, com os sentidos bem abertos, pois todos – a exemplo do poeta maior da língua comum – somos feitos de carne e de sentidos, há uma outra imperecível continuidade, tecida de silêncio e de meditação, a do ser humano em busca da imortalidade através da junção das palavras no mistério da escrita. Nessa unidade, o mais inexperiente repórter (e nunca fui nem sou senão um deles) está ligado indissoluvelmente ao criador supremo, ao Poeta. Na procura dessa unidade, me abrigo sob as sombras luminosas desta Cadeira. E estar entre vós assegura que os caminhos se abrem no desdobramento infinito das veredas do planalto.
24/7/1970