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Uma Ética de Tradução

 

A obra de Montaigne redefine a descoberta do sujeito moderno, nas grandes rupturas do século XVI. Alarga a visão do indivíduo, que nasceu no coração do cristianismo, na releitura dos clássicos. E trouxe para o centro de seu repertório a observação do eu (ou do nós, como disse Compagnon), do mesmo modo pelo qual Galileu fundamentou o método de observação e ensaio. Uma forma de universo prático, mensurável, ao mesmo tempo relativo e absoluto. Criou uma obra total, onde o observador protagoniza a busca da verdade. Cria uma rede ágil, densa e fugaz,  onde se espraia a interpretação das coisas.  E como Galileu, mais tarde, aceita as manchas lunares, dentro de seu espírito, a fragilidade e o abismo de um mundo que preferia não lidar com a sombra. Donde o ziguezague do percurso,  antecipando o estado larval da dúvida. Não mais o tratado, mas o ensaio. O limite das coisas não sabidas, a interrogação como forma principal e suficiente.
    
Traduzir Montaigne comporta um índice de altíssimo risco. Sobretudo em virtude de uma prosa essencial, de baixos decibéis, no limite do silêncio, do espaço entre as linhas, sem alarde, portanto, seguindo uma progressiva emissão de timbres refinados, contrastes sutis, volumes semânticos pouco alterados, no peso e na distribuição da frase. Ele mesmo disse: “Quero que as coisas dominem e encham a imaginação de quem escuta, de tal modo que o ouvinte não tenha nenhuma lembrança das palavras. A linguagem que amo é uma linguagem simples e natural, tanto no papel como na boca: uma linguagem suculenta e nervosa, curta e concisa, não tanto penteada como veemente e brusca.”

Assim, traduzir Montaigne, na chave da concisão e da veemência, é, em certo sentido, mais complicado que traduzir François Rabelais ou Teófilo Folengo. Embora difíceis, este e aquele rezam pela gramática da expansão, numa levedura incessante, que demanda recursos voláteis, marcas de efeito, mudanças sintáticas intempestivas.  Uma cadeia de neologismos e palavras macarrônicas. De outra beleza, bem entendido, que as distingue de Os ensaios. 

Com Montaigne é tudo meio-tom abaixo, como quem sussurra, ou esboça uma  alusão, como quem não diz e, com isso, amplia sua  potência afirmativa. Uma leitura exigente, como a dos exercícios  de  Inácio de Loyola ou do estoque de argumentos de Étienne de la Boétie.  O que Montaigne disse da inquietação do espírito humano aplica-se a uma tradução em progresso, igualmente líquida e obstinada: “É sinal de estreiteza quando o espírito se satisfaz: ou sinal de lassidão. Nenhum espírito poderoso se detém em si mesmo. Sempre se empenha em ir mais longe e vai além de suas forças. Seus impulsos vão além de seus feitos. Se não avança e não se apressa, e não se força e não se choca e se revira, só está vivo pela metade. Suas buscas não têm término nem forma. Seu alimento é o espanto, a caça, a incerteza”. 

Assim diz Montaigne, no verbo de Rosa Freire d´ Aguiar, levada  pelo “desafio de traduzir um texto de quatro séculos de modo a conquistar o leitor de hoje”. Dissolvendo, para tanto, com delicada parcimônia, nimbos e cúmulos de palavras-nuvens, deixando, todavia, intocável o céu azul escuro. Declara sua estratégia: “Os ensaios são escritos em linguagem recheada de incisos, digressões, arcaísmos, trocadilhos, às vezes em detrimento da clareza”. E completa que procura “conciliar o respeito ao original com a legibilidade para um leitor de hoje, apresentando-lhe uma tradução cuja fluência, longe de banalizar a obra, o leve ao prazer da leitura.” Promessa que poucos saberiam cumprir com a mesma qualidade de Rosa. Fui bater às portas da Pléiade e comparei dois trechos, relativos aos índios tupinambás e à análise da solidão, em que Petrarca e Agostinho promovem, com  Montaigne, um colóquio soberbo.  Volto das obras completas convencido das escolhas de Rosa, dentro de uma língua clássica e nem por isso pedante –  para escândalo de certa pós-modernidade, para quem o moderno não é senão  sinônimo de um  amanhã sempre adiado. Brilham, no laboratório de Rosa Freire d´Aguiar, resíduos químicos  de Antonio  Vieira e  Manoel Bernardes. E sobretudo  Machado de Assis,  mestre da fluência e da tonalidade recolhida. A tradução de Montaigne respira com plenos pulmões machadianos.  Sem ele, Rosa não teria realizado sua trama complexa.  

Aponto para uma ética da tradução, pactuada com clareza entre os textos, na melhor  contabilidade do que se ganha e do que se perde. Administrar o processo exige decisões incontornáveis. E nisso consiste o mérito da leitura de Os ensaios.  Rosa seguiu os versos de Murilo Mendes, que dizia olhar para tudo com olhar ambíguo. Ou plural. Eis a marca da grande tradução de Montaigne. 

Só não simpatizo com a quarta-capa, quando afirma que a antologia  apresenta uma abrangência exemplar “sem que se precise recorrer aos três volumes de suas obras completas”. Pergunto-me o grau de dispensabilidade da obra de Montaigne, nas ondas do hipertexto e do nomadismo. A obra completa se ressentiria da aparência de um complô metafísico, livro sagrado, espécie de coisa em si, contra a qual se deve lutar, em busca de fluxos mais velozes ou, quem sabe, menos controláveis. Se isso for radicalizado, um blog de Montaigne poderia dispensar-nos da leitura da presente antologia?  Não creio. Uma ética da tradução responde por uma ética do leitor. E nesse mundo não existe substituição. Mas   transmutação. A alta literatura dispensa embaixadas, representações didáticas ou científicas.  São instrumentos. Mapas de travessia.  E aquela seleção cumpre rigorosamente com as duas pontas de um mesmo conjunto ético.

O Globo, 21/01/2011