Entre os presentes à inauguração da estátua de Joaquim Nabuco na Praça Manuel Bandeira, ao lado do Palácio Austregésilo de Athayde, justíssima homenagem ao grande abolicionista pernambucano sugerida pelo presidente da ABL, Marcos Vilaça, e concretizada pelo prefeito Eduardo Paes, circulava um menino magrinho, bem moreno, com a aparência de 10, no máximo 11 anos, com sua caixa de engraxate. Na forte ventania daquela tarde, a desmanchar os cabelos de damas e cavalheiros, o menino se esgueirava entre os presentes, ágil, mas sem esconder o temor de ser repreendido por incomodar gente importante. Na insistência em sobreviver, ele repetia, a frase típica dos profissionais do seu ofício: "Vai uma graxa, doutor?"
O momento e o local eram inadequados para o ofício do garoto. Reparei no seu ziguezaguear rápido e senti a potencialidade de um craque do futebol. Em mais alguns anos, bem treinado e bem alimentado, ele entraria com facilidade pela mais fechada das defesas com a bola nos pés, e mandaria o couro para o fundo das redes.
Em certo ponto de sua busca por trabalho, ele passoupela estátua. Parou um momento, e seus olhos dirigiram-se para os sapatos de Joaquim Nabuco, mais parecidos com botinas. Observei no seu olhar aquele fascínio despertado no profissional competente diante do trabalho a ser realizado. Deve ter pensado, ou então eu pensei por ele: engraxar sapatos, isto eu sei fazer, eu gosto de engraxar bem, apesar da trabalheira que dá. Imaginei o seu desejo de lustrar aquelas botinas de bronze. Mas, ao voltar os olhos para o alto, meio desiludido, o menino percebeu que, na condição de estátua, Nabuco não poderia remunerar os seus serviços, embora, e isto ele não sabia, em vida o homenageado fosse generoso e até pródigo.
Tudo passou num instante fugaz. O menino voltou a circular com rapidez entre os presentes, e não encontrou quem necessitasse dos seus serviços. Findada a cerimônia, quando o grupo se dispersou, observei-o, solitário, com as pequenas mãos alisando as botinas da estátua, e a fisionomia a revelar que, mesmo sem cobrar um centavo, ele
gostaria de ser o engraxate de Nabuco. Enquanto me afastava, imaginei o que diria Nabuco, mais de cem anos após a sua morte, sobre a vida do menino engraxate ã procura de sapatos sujos para sustentar-se e ajudar a família, em situação parecida com a das crianças obrigadas a trabalhar no regime escravocrata.
Na homenagem ao brasileiro que lutou contra um sistema desumano, encontrava-se, obscuro e anônimo, o menor sem escola, sem comida, sem saúde e sem tempo para brincar.
O pequeno engraxate é um brasileiro entre milhões de outros. Ele nada sabe sobre o que fez o homem cujos sapatos despertaram seu interesse. Mas aos nossos ouvidos roucos de escutar promessas ecoam de forma atualíssima, mais de um século depois, as palavras de Joaquim Nabuco. Ele afirmou, no seu livro clássico, que a abolição da escravatura não seria o fim, mas sim o começo do processo capaz "de empreender um programa sério de reformas para que delas resulte um povo forte, inteligente e livre".
Objetivo que, um século após sua morte, continua distante.
O Globo, 15/4/2011