Como são amplos os desafios que cercam a universidade pública no Brasil. E todos fascinantes, oriundos da pressão legítima, democrática e inclusiva da sociedade civil. Traduzem o projeto de um país maior, não do ponto de vista geográfico, mas a partir de um rigoroso imperativo moral. Maiores investimentos. Mais alunos. Professores. E um programa de aceleração do crescimento da pesquisa.
Os possíveis ruídos entre o ministério da educação e as universidades públicas traduzem o índice de como e de quanto a discussão das metas não se esgota, ao mesmo tempo em que revela uma experiência coral nas altas esferas de decisão, no aumento do número de interlocutores, diante de uma agenda efervescente.
Tudo sob a defesa absolutamente incontornável da autonomia universitária, de que não se pode abrir mão sob qualquer hipótese. Autonomia que produz uma variegada expressão de tendências e desenhos nas Universidades públicas, nos campos da pesquisa, ensino e extensão, em todas as regiões do país, promovendo ações sociais positivas e pólos de excelência, de que a Federal do Rio, dentre outras, não perde seu revigorante protagonismo.
Um exemplo notável é o da Faculdade de Letras da UFMG e que consiste num golpe desferido contra a burocracia: a supressão total dos departamentos, criando, em seu lugar, núcleos de estudos, células de pesquisas afins, com alto potencial multiplicador de pesquisa e conhecimento, apostando fortemente no diálogo, na criação permanente de interfaces, aproximações, e sobretudo de belas e sólidas aventuras intelectuais.
A experiência pode não responder bem em outras unidades, seja por demandas específicas de gestão, seja por perfis acadêmicos muito específicos. E, contudo, na Letras da UFMG a qualidade dos trabalhos e a conseqüente avaliação nos órgãos de fomento subiu de modo substancial.
Para além dos índices, que são sempre secundários, importa refletir o conceito da mudança e indagar o alcance de metas e resultados possíveis.
Primeiramente porque tira da interdisciplinaridade o caráter fantasmal que lhe atribui o professor-burocrata, que lhe declara uma guerra subterrânea, com seu ódio indisfarçável e preguiça contumaz. O discurso politicamente correto defende o domínio interdisciplinar, mas a prática mostra muitas vezes o oposto.
Senhor de um pequeno feudo ou vassalo de um conjunto de disciplinas, diz melhor conhecer – ou dominar – seu pobre território. Nesse caso, a grade curricular cria uma base monolítica, dura e sem janelas, como se as matérias não fossem mais que um complexo de mônadas, irrevogavelmente solitárias. O novo como um insulto. E a curiosidade, um ato de insurgência.
Aos feudatários importa cumprir o ato litúrgico e vazio de uma cultura tabeliã. Produzir memorandos. Selos. Diplomas. Carimbos de marca. E cumprir rigorosamente a procissão interminável de milhares de reuniões, interrompidas, apenas, por vezos cartoriais hierarquicamente superiores. O homo burocraticus produz formulários e relatórios (on-line ou off-line), num tempo de estudos minguantes e superficiais. Muito cartório para pouco laboratório. E ai de quem olha acima das aduanas disciplinares: estará cometendo um crime de lesa-departamento, seguindo-se um código penal invisível para quem é flagrado cometendo práticas interdisciplinares.
Creio que a Faculdade de Letras da UFMG quebrou núcleos feudais, rompendo laços que prendiam os alunos às disciplinas, como servos da gleba, vistos a partir de um setor ou departamento, de um carimbo ou endereço.
Não se aposta no diletantismo. O específico permanece. Importa apressar a extinção dos que nasceram debaixo do guarda-chuva cartorial, completando um percurso claudicante das alianças litúrgicas de papelórios, longe de qualquer demanda intelectual.
Acredito profundamente na Universidade pública e nos seus altos destinos. Por isso rezo para Santa Flexibilidade, padroeira dos estudos interdisciplinares e de uma Universidade mais aberta.