É como a cidade de Roma, não permite meio termo: ou se ama ou se detesta. Ambas as hipóteses são explicáveis.
Roma é uma velha ruína, ruas estreitas e tortuosas, mal iluminada, parece uma decadente estação ferroviária do interior, aos escombros, caindo aos pedaços.Os decantados mármores estão sujos pela poeira das ruas e dos séculos, ou azinhavrados pelo caldo verde que escorre dos bronzes.
Para quem não está a fim de curtir a cidade, Roma é um purgatório que só funciona na hora em que o sujeito vai ao aeroporto (se não houver "sciopero") e embarca para Londres, Paris ou Nova York. Aí sim, é gozar, é refocilar.
Com o Carnaval é a mesma coisa: há quem abomine a grande festa, o barulho dos surdos e tamborins, a gritaria das gentes, o suor, a cerveja e o sol que, juntos, formam a murrinha que muita gente considera característica das festas do povo.
O amor também exala murrinha igual, mas é outra coisa.
No Carnaval, a alegria parece postiça, comandada pelo calendário, pelos serviços de turismo do município, o sujeito acorda de manhã (quando acorda) e pensa: "Hoje é Carnaval", e sente uma vaga obrigação de fazer alguma coisa, embora nada faça.
Variando de pessoa para pessoa, poderá pensar que o Carnaval poderia ser melhor, mais romântico ou mais pecaminoso, com suas oportunidades, sua catarse sexual e social, perfumada pelos lança-perfumes que agora estão proibidos.
Quem não sabe o que era um rodo-metálico pode saber grego, sânscrito, o peso dos astros, a distância da Via Láctea, onde estão os ossos de Dana de Teffé -mas não sabe nada.
Bem, há outra maneira de ver as duas coisas, Roma e Carnaval.
Não vou encher a paciência de vós outros falando da cidade que assistiu ao fim de várias civilizações e se torna o ponto de vista ideal para observarmos o que anda por aí e aquilo que ainda virá, cidade mais do que bela: unicamente, verdadeiramente bela -e dizem que eterna, apesar de Berlusconi.
Quanto ao Carnaval, o outro lado da moeda é fácil de expor: basta olhar o rosto de uma mulher que, depois de beber e dizer asneiras, pula em cima da mesa e rebola até a manhã raiar.
Pode não ser bela nem boa, mas é mulher, está na dela -e ainda que seja a mais enrustida das mortais, a mais complexada ou mais enfossada, naquele momento explode com sua festa particular ampliada pela soma de festas antigas e parecidas, inclusive as particulares, que ela elegeu para seu gosto pessoal e para o prazer dos outros.
Sim, há que ter muita vontade e saúde para não perder o trem da folia embora perca o trio elétrico, atrás do qual vão aqueles que um dia morrerão como todo mundo.
Quanto mais barulho, mais suor e sol, quanto mais tudo, melhor. Os resmungões que fiquem pelos cantos, que fujam para as serras, as praias, os retiros espirituais.
O Carnaval exige espaço dentro e fora do folião, não é uma paisagem que se resume a um estado de espírito, mas uma obrigação para o corpo que pula e para a alma que esquece.
Pular até que é fácil, esquecer é que é o problema porque tudo acaba na quarta-feira.
Já foi dito que o Brasil já teria promovido a sempre adiada revolução social se não houvesse, todos os anos, o Carnaval que transforma o operário desempregado em pajem da corte e a empregada de balcão numa deusa grega ou numa rainha de Sabá com as coxas de fora.
Creio que deve haver alguma verdade transcendental, como todas as verdades, nessas fabulações criadas pelos nossos carnavalescos profissionais.
Melhor do que nossos governantes do passado e do presente, o Carnaval produz o tal pacto social que a nova presidente do Brasil está prometendo. Nos três dias, a miséria é erradicada e há espaço, senão para o pão, para o sonho.
Os poderosos, os corruptos, os pecadores e até mesmo os santos, todos se recolhem para saborear, como onanistas, o seu poder, a sua corrupção, o seu pecado ou até mesmo a sua santidade.
As ruas passam a pertencer ao homem comum, despojado de crenças, direitos e deveres. Oferecem seu espaço urbano aos que têm coragem e lucidez para sujar a cara ou quebrá-la, se for inevitável.
Folha de São Paulo, 11/3/2011