RESPOSTA DO SR. CARLOS MAGALHÃES DE AZEREDO
SENHOR Amadeu Amaral.
Não estranho a perplexidade que vos colhe, ao tomardes o vosso lugar nesta Casa. É o lugar que pertenceu, por vinte e um anos, a Olavo Bilac; ele o pusera sob o patronato de Gonçalves Dias.
Brilham, assim, sobre vós dois magnos e formidáveis nomes. Gonçalves Dias personifica o esforço mais bem sucedido da poesia nacional para assumir a consciência de si mesma como entidade à parte, mas sem ruptura com a terra da sua origem, com o sistema planetário das suas tradições, antes espelhando na própria fisionomia inconfundível os reflexos de uma grandeza universal e cósmica. Olavo Bilac, encarnando, em período mais recente, e com maior complexidade estética, o mesmo duplo pendor, chama a si, na última, tão fecunda e maravilhosa face de sua existência, a missão de um apóstolo suscitado pela revelação fulgurante dos destinos da pátria, no fragor de um drama também universal e cósmico, o obstinado e heróico labor de um apóstolo, cuja voz já agora não emudecerá mais na atmosfera luminosa de esperanças, ou torva de ameaças, serena de paz, ou procelosa de guerra, desta pátria que ele amou, e que nós amamos.
Esse vago receio de caminhar ladeado por dois gigantes obedece a um sentimento de justa reverência. Ele atesta a vossa intuição profunda do prestígio da poesia, e da seriedade da arte.
Mas a Academia mediu bem o alcance do que fazia, quando vos elegeu. Ela entendeu consagrar um escritor de linhas e idéias já definidas, na madureza do seu próspero engenho, senhor das suas normas e dos seus instrumentos de trabalho, que, por livros já em si realidades tão sólidas como brilhantes, não meras promessas, garantia outros ainda, portadores de glória para a nossa companhia, e para as letras brasileiras. Se em alguns votos influiu, como sempre, sucede em casos tais, a simpatia pessoal, esta, em nenhum deles por certo, separada da admiração engrandece ainda a auréola do poeta e do artista; pois documenta a intensidade do nosso desejo de atrair para esta Casa, para a nossa assídua, operosa, franca e leal convivência, um companheiro já muito prezado em suas feições, e de cujo trato só podemos esperar horas deliciosas.
Por minha parte eu me regozijo da escolha, com que a Academia me honrou, para receber-vos. Ela me vai dar ensejo de falar, com emoção e afeto, de dois poetas, e da poesia; de dois artistas, e da arte; e por eles, e com eles entrelaçarei no meu discurso a racionalidade e a humanidade. O quadro que se me abre diante dos olhos é o mais vasto e o mais belo...
De um palácio me parece que parto para essa viagem encantada; há nele estatuas e painéis, troféus rutilantes, e arcas cheias de jóias, palestras para a luta, e leitos de doce repouso. A riba que me aguarda é um jardim imenso, rico de plantas da terra e exóticas, sonoro de fontes e de ninhos gorjeantes. Junto à verde margem se balouça nas ondas cérulas uma galera, com entalhos de ouro e velas de púrpura, para singrar comigo um grande rio, e ela me levará festiva, impelida pelo vento galerno, até a foz tumultuosa, e comigo penetrará no oceano sem termo.
Tal é a perspectiva, que me aparelhastes para este momento, vós e Olavo Bilac. Se a miro com natural e muito fundado temor de ser nimiamente pequeno para ela, mais pode em mim que essa impressão o entusiasmo que um espetáculo grandioso comunica por força ao espectador mais interessado por ele que por si próprio. Eu sou o ceifeiro que colhe no júbilo da abundância a messe por outros semeada com esforço, talvez com fadiga, com tristeza.
Há tristeza, senhor Amadeu Amaral, no início da vossa jornada de poeta. E o vosso primeiro livro tem um título de melancolia: Urzes... Lembra caminhos ásperos onde os pés, dilacerados por espinhos, vão deixando longas estrias de sangue; e não poucas dessas puas cruéis varam o peito do viandante, e lhe chagam o coração... Todavia, ainda que visivelmente sincero, não de pose e livresco, raro atinge o vosso sofrimento de então grande intensidade.
Percebe-se que é de adolescente, que o motiva a perda dessas primeiras ilusões sem raízes, dentes de leite do espírito, que, como os das gengivas infantis, caem quase sem dor...
Ele não se desabafa em gritos, em furores musicais de tempestuosa orquestração; externa-se em flébeis suspiros, e gemidos melodiosos. Nada de dionisíaco, para empregar um termo em voga, pinturesco e belo, irrompe da vossa juventude, cismadora. Não sacudis no ar o tirso florido, não entoais frenético o Evoé! também não vos arremeçais contra a sorte, vociferando objurgatórias, nem contra a Divindade ululando blasfêmias.
Ao contrário, uma suave resignação vos acompanha quase sempre; ela anda de olhos erguidos e mãos postas, em atitudes religiosas, mais ainda, monásticas, que não sei donde lhe vêm, e a vós mesmo, se das práticas de piedade presenciadas em família, se de capítulos ascéticos lidos com o fervor dos vinte anos, se de vagas transposições literárias... Como quer que seja, a vossa imaginária de então é acentuadamente claustral. Gostais de figurar-vos hóspede de um convento, hóspede desenganado tão cedo, como muitos que em conventos moram, de um mundo, apenas de relance, visto:
“Quem me conhece, muitas vezes há de
ver que na Dor, como hoje, me enclausuro,
monge vagando em corredor escuro,
alheio aos ecos da comunidade.”
“Por entre os claustros da Amargura arrasto
no pavimento a minha vil sandália.”
“Eu já fui cavaleiro, e na guerra, que assola,
todo o corpo chaguei, vi que tudo é maldade...
Dentro da minha dor, que da vida me isola,
Recolhi-me, e hoje arrasto a cogula de um frade...”
Entretanto, logo se entra a suspeitar que o monge não é dos que hão de envelhecer envoltos ao burel, contentes de mirar os aloendros, as roseiras, os mirtos e os ciprestes em torno do poço musgoso, no horto da comunidade. As suas leituras não se limitam, por certo, ao ofício e à Imitação; acresce que o noviço tem visões, circunstância que sói despertar a vigilância dos superiores. Sabe ele de outro frade, devoto e casto, mas provavelmente pungido de tentações,
que chama a Virgem, para que lhe valha,
vendo-a surgir – atônito, e rasto –
no fundo escuro da bruta muralha.
Ao nosso – ao monge de outrora, que aqui temos presente – não aparecia, a Madona, terrena, ainda que santa:
figura
clara e esbelta e formosa de uma santa...
santa de um céu ignoto, céu de sonho.
Sorte de Beatriz, entre infantil e juvenil:
Vede perfeitamente ogni saluta
chi la mia donna tra le donne vede;
quelle que vanno con lei son tenute
di bella grazia a Dio render mercede.
Mostrasi sì piacente a chi la mira
che dá per li occhi una dolcezza al core
ch’intender non la può chi non la prova.
E par che de la sua labbra si nuova
un spirito soave pien d’amore,
che va dicendo a l’anima: Sospira!
E a mim me apraz imaginar-vos, dentro da vossa pequena cela, embevecendo a contemplá-la naquele “céu de sonho”, que não é o “céu da Teologia”, e a miniar-lhe a efígie num cândido pergaminho, idealizada, angelicata, com vestes de azul, de escarlate e de ouro, e um resplendor de longos raios em redor da cabeça loura – que outra cor de cabelos, qualquer que fosse a dos seus na realidade, destoaria do estilo da iluminura... assim, como um desses ingênuos primitivos, que meneavam os pincéis com tocante e deliciosa candura, por vezes ainda incertos no desenho, tímidos no claro-escuro, e desorientados na perspectiva... mas vibrantes de um ardor sem tréguas, e de um misticismo sem quebrantos.
Em vos também, nesse volumezinho encantador das Urzes, percebem-se as hesitações do principiante. A língua é a espaços tosca, a metáfora é rebelde, ou canhestra, e o ritmo, sem claudicar nunca; trai cá e lá um árduo esforço de adaptação. Quando ousais arrastar argumento mais complexo e exterior ao vosso pathos habitual, como no poema “João Batista”, sente-se na imperícia do esforço, e no recurso instintivo aos lugares-comuns, a impreparação de Rafael infante, que se abalançasse a tentar um dos painéis de conjunto das Estâncias, no Vaticano. E só o retrato de Herodias, porque de uma dessas mulheres soberanas com que anda sempre a sonhar a adolescência dos homens, oferece alguns toques felizes, como este:
Sob a cabeça, em lânguida moleza,
tem as mãos preguiçosas enlaçadas,
rutilantes de anéis...
Mas é aquele também no livro, um caso único; caso obviamente, do mimetismo literário característico daquela vossa idade; e por isso mesmo admira que seja único. Em todas as outras páginas vos conservais na vossa esfera própria, num lirismo suave, pensativo, e um tanto quérulo. A sinceridade e a doçura dele são tão penetrantes, tão persuasivas, que fazem esquecer os defeitos inevitáveis da técnica; e, em suma, guarda do livro quem o lê, com aquela simpatia intelectual sem cujo influxo nenhuma obra de arte nos interessa, uma lembrança grata, avivada cá e lá pela persistência de alguns motivos, de alguns versos luminosos e canoros.
Pois, afinal, o monge se aborreceu do mosteiro, e veio cá para fora perlustrar os caminhos de toda a gente, imergir-se nas lides e ânsias e paixões múltiplas, de que a nossa existência se compõe. Não importa saber se habitará o “castelo do sonho”, ou o “casebre da ventura”, provavelmente se alterará entre um e outro. A santa desceu do altar – no fundo ele não desejava outra cousa; é uma mulher, ainda um pouco menina; mas tomará, com descrição e jeito, o governo do lar, pois o amor é nela a segunda forma do instinto materno, de que a primeira foi o afeto zeloso pelas bonecas; e logo vem, ex muliere, domina. Mas, uma ao lado da outra, duas criaturas que se amam assim, como não acabarão por atinar com a estrada e a entrada do paraíso? Haverá horas sombrias, horas de atmosfera cinzenta e silêncio carregado de procelas; haverá rugas, desconfianças mútuas, divórcios transitórios; então o poeta forjará símiles terríveis, comparará a sua alma a
uma casa abandonada,
por cujos tenebrosos corredores
volteia a ronda volatizada
dos espectros dos mortos moradores.
ou a “uma velha e pavorosa mata...”. Paciência. O Paraíso também não há de ser assim conquistado sem luta, de graça. Mas, através dos queixumes e das recriminações, já se lhe pressente a proximidade:
A velha mata lamentosa, olhai-a!
rumoreja e resplende; um arrebol
de mocidade dentro dela raia...
a magia do sol!
Das Urzes para as Névoas – intervalo de onze anos – há um grande surto de poesia. Há, paralelamente, notável progresso no estilo poético. O vate, que começara cantando por puro instinto, trovador errante, aceitando e usando sem preocupação de estudo os metros correntes no seu tempo, nos aparece agora consciente da sua arte, e de todas as normas e necessidades de arte. Névoas serão estes versos pelo que haja flutuante e misterioso em alguns estados de alma onde nascem; não decerto pela forma, que é nítida como os contornos das penhas, das árvores, no éter das manhãs limpas de bruma. Nítida, mas não imota como as penhas; ondeante e palpitante como as árvores, que respondem a cada sopro do ar e a cada beijo da luz, farfalhando e brilhando, sorrindo em transparências de prásio nos gumes das suas folhas, em matizes diáfanos de jade, topázio, turmalina, granada, ametista, nas rendas das suas flores nas curvas elegantes dos seus pomos, desentranhando-se em suspiros de volúpia, ou tristeza, de felicidade pelo tranqüilo gozo da boa linfa da terra, ou em murmúrios de inveja ao atentarem nas aves que percorrem livres o espaço...
Antes por imagens, haveis de tê-lo observado, que por aqueles secos argumentos caros à maioria dos críticos, vou eu buscando esboçar de algum modo a vossa fisionomia... É que sobretudo por meio de imagens convém representar esses criadores de imagens por excelência, que são os poetas. Nem o mais alto conceito, nem o mais raro e forte sentimento são matéria poética, sem se transmudarem previamente em imagens, sem adquirirem, pelo menos, a ductilidade especial, que lhes permita irmanar-se às imagens circunstantes. Comum engano de críticos é pretenderem reduzir os poetas à medida dos seus áridos raciocínios, que, não tendo recebido a graça batismal na experiência vivida da poesia, mais não são que exteriores e arbitrários preconceitos. Há muita verdade, e uma regra segura no dito tão citado do bom velho Ferreira:
Poetas por poetas sejam lidos,
desde que por poetas se entendam, não apenas os que compõem versos, mas quantos possuem o amor e o gosto da poesia.
O domínio próprio dos poetas é o imenso e arcano império das afinidades. Eles discernem entre as cousas, correspondências ocultas e profundas, que escapam à pesquisa do sábio e à meditação do filósofo. Aproximando pela sua intuição e pelo seu mágico verbo idéias, formas, vidas inúmeras, que ao vulgo se afiguram distantes, e indiferentes umas às outras, eles fazem vibrar nos corações dos homens a anelo da universal fraternidade, que é um sonho irrealizável, ou prematuro, fora desse mundo privilegiado da arte. Por séculos e por milênios, desde a Índia e a Grécia e a Judéia, esse inebriante tesouro dos símbolos foi escrutado e explorado por legiões de poetas; mas é falso que esteja esgotado, ou possa esgotar-se jamais.
Enquanto nos envolver o mistério da natureza e da existência – e perpétuo nos envolverá porque as pequenas lanternas da ciência aluminam apenas fracamente alguns dos recantos mais próximos da estrada que trilhamos, e para além se estende o infinito – não perderá seu prestígio a linguagem dos vates, sugestionadora de cismas e aspirações sempre doces a nós prisioneiros neste vale de lágrimas. Cada poeta verdadeiro que aqui surge, traz ao nascer a revelação de uma nova sensibilidade, seja ensinando novas harmonias entre as cousas, seja interpretando de modo novo as que antes dele outros haviam descoberto. Eis porque na poesia, ainda na mais profana e na mais escrava do instinto carnal, há algo de frêmito religioso. A poesia é irmã gêmea da prece; são as duas asas da alma e a levantam do contingente ao absoluto, do transitório ao eterno.
Presumo, Sr. Amadeu Amaral, estar na rota justa para vos falar aqui; vós não esperais de mim neste momento um estudo crítico; mas o que vos deve ser mais caro, e o que sou feliz de dar-voz – a saudação amiga de um poeta a outro poeta.
Ela testemunha a simpatia com que vos partilhei uma a uma as emoções, e gozei uma a uma as belezas das vossas estrofes, franqueando o meu espírito à plenitude do vosso estro, como se abrem as comportas para que a água viva do rio refrigere e estimule as beiras do campo.
Felizmente, daquela preocupação da forma que confessais no soneto inaugural das Névoas, não resultou para vós a esterilização que resultará porventura para quem não possuísse uma fonte genuína de sentimentos. Sim, a Musa é esquiva e teimosa, às vezes, por pura coquetterie feminina; e precisamente como certas mulheres, gosta de ser violentada... pelos que ela ama e deseja. Que, quanto aos outros, não há promessa que a seduza, nem ameaça que a subjugue. Se de quando em quando lutais com ela, são lutas de amor, e, como tais, aguçamento de prazer. Sem dúvida, ela é alada como Psique; e algum dia em que mais afanoso correis para alcançá-la, será capaz de ruflar as lindas penas, e fugir-vos pelo ar fora; mas tem de Psique também a índole meiga e afetiva; cede logo à ternura, à saudade. Enquanto vos quedais amuado e queixoso, com a fronte escondida nas mãos, e os cotovelos fincados na mesa de trabalho, ei-la que volta sem rumor, já colhidas as penas, pé ante pé, e sentis de repente a carícia dos seus braços liriais em torno dos vossos ombros.
Caprichos de amante, que centuplicam as graças do amor. Por mais que tenhais negado, em recente epístola, havê-la visto nunca... perdoai, não vos darei crédito. Reservas de amante, bem educado e cavalheiro, que não se jacta das intimidades do amor.
Se lhe escondeis, por diplomacia, ou por modéstia, a presença assídua a vosso lado, ela se nos denuncia pelos dons que ostentais, sem pensar na contradição. Essas Névoas não têm a consistência das nuvens em que Júpiter se envolvia para ocultar aos numes mexeriqueiros como simples mortais, suas aventuras de amor, legítimo, ou ilegítimo. De resto, o vosso é perfeitamente legítimo.
Sem dúvida; pois quem vos acompanha através deste livro sente que se está movendo em plena região da poesia.
É poeta quem escreve este soneto:
Almas contemplativas! vão rolando
por esta vida, como os rios quietos...
Rolam os rios – árvores e tetos,
céus e terras, tranqüilos, espelhando;
vão refletindo todos os aspectos,
num serpentear indiferente e brando;
espreguiçam-se, límpidos, cantando,
no remanso dos sítios prediletos;
fecundam plantações, movem engenhos,
dão de beber, sustentam pescadores,
suportam bancos e carreiam lenhos...
Lá se vão, num rolar manso e tristonho,
cumprindo o seu destino sem clamores,
e sonhando consigo um grande sonho...
É um poeta quem fala assim à lua:
Ó clara, ó alta, ó refulgente lua,
se te elevas, meu ser também se eleva,
e onde vais flutuando, ele flutua...
É um poeta quem resume nestas duas linhas um momento culminante do êxtase amoroso:
Lanças-me o teu olhar, que me domina,
e logo o baixas, como dominada.
e quem diz a outra mulher:
Contemplas-te vaidosa nesta mágoa...
Mas, em vez de respigar versos destacados, eu desejaria substituir o meu discurso pela só leitura de páginas inteiras. Comentar o artista, quando se podem mostrar as obras de arte, e claras, expressivas, persuasivas como as vossas? Leria, para gosto meu e dos ouvintes, empenhando-me com zelo, em ser bom intérprete... Fora, porém, infringir o regimento, desorientar estas senhoras, estes senhores que contam com dois discursos, querem por força dois discursos. Transijamos. Mas não se estraga a toilette espetando uma rosa à lapela, e uma pérola de fino oriente na gravata.
Que será, pois? “Surdina”? É linda, e das minhas preferidas; mas para tanta gente? Não; “Surdina” deve ser ouvida em petit comité, como certas músicas íntimas, que é absurdo executar nos grandes concertos. Serão as “Visões da Saudade”? os capitulozinhos irônicos e apaixonados da “Velha Comédia”? mas fora preciso dá-los todos, para se lhes perceber o encadeamento, e ainda me acusariam de agarrar-me insidiosamente ao vosso trabalho, por incapacidade, ou preguiça de produzir o obrigatório discurso...
A página desejada, é em Espumas, no vosso último livro, que vou encontrá-la. Lerei, a “Prece da tarde”, uma das mais formosas criações, a meu ver, do lirismo contemporâneo:
Gênios mansos da tarde, escutai minha prece.
Sinto-vos deslizar por estes ares... Pondes
um véu de seda azul no ombro nu da colina.
Entre as moitas, o rio, em silêncio, adormece
E sobe, lento e lento, entre os cimos e as frondes,
da fadiga da terra o sonho da neblina.
Bolem na ondulação do campo, cujos termos
se vão perder ao longe em manchas de fumaça,
longas hesitações de água em açudes quietos.
E as mulheres que vêm da fonte pelos ermos
parecem respirar tranqüilidade e graça,
erguendo no ar tranqüilo os cântaros repletos.
A mata, além, na linha extrema do horizonte,
junto às nuvens, que são vastas selvas aladas,
são nuvens a ondular no grilhão das raízes.
Tudo se esgarça e fluidifica. O híspido monte
dissolve a pouco e pouco, em tintas apagadas,
a aridez do contorno e o vigor dos matizes.
Gênios da tarde azul, enchei-me de harmonia...
Doces, apaziguais o vale amplo e revolto.
Também minha alma é assim, revolta: sossegai-a.
Permiti que o meu ser, na luz final do dia,
bóie e paire desfeito, ondeie calmo e solto,
num sereno esplendor de água brava que espraia.
Vós que comunicais a toda a natureza,
nesta lente fusão das cores e das linhas,
do perfume e do som, tão longo êxtase mudo,
permiti que minha alma, ao jeito da represa
que se abriu e inundou as regiões convizinhas,
se derrame, calada e extática, por tudo.
Por tudo se derrame, arrastada, envolvida
por esta alma abismal das coisas, ampla e bela,
e também se desmanche em sombra e em murmúrio
e sinta-se viver de imensa e obscura vida,
que por tudo circula, e em tudo se revela,
e palpite com a fronde, e soluce com o rio.
Passada esta hora leve, em que assim se repousa
sem ilusão sem dor, numa serenidade,
que surpreende e seduz o espírito contrito,
deixa-me carregar comigo alguma cousa
deste instante feliz de beleza e verdade,
de plenitude e paz, de sonho e de infinito.
Alguma cousa, enfim, que me fique no peito,
que me fique na dor, como um suave despojo,
no tumulto e no pó do mundo estreito e amargo,
como num barco preso em porto esconso e estreito,
parece ainda pairar, entre as velas e o bojo,
a ampla palpitação das carreiras ao largo!
Este é o poema perfeito, meigo, melancólico, musical, impregnado de delicioso lirismo. Ele assinala o ponto máximo da linha ascensional iniciada nas Urzes. E são muitos, em Espumas, os poemas dignos de estar a seu lado, embora seja aquele, a meu ver, o mais belo. No “Cedro expatriado” é linda e melodiosa a forma, unida a uma profunda intuição de anima retrum, e há comovente simbolismo. A “Tapera” é um quadro de mestre; fica-se com o olhar preso ao abandono e à ruína da velha casa, onde
apenas, sobre as lombas
do teto a desabar, caminham sem cuidado
nos pequeninos pés, turturinando, as pombas.
O dialogo entre o “Vagalume e o escaravelho” traz, em tom raro de humorismo, um ditame de sabedoria adaptado ao critério de dois insetos... o que, porém, eles são para “o parque, o vasto campo, a selva... e além, o morro”... não somos nós para os continentes, o orbe, as esferas, os sistemas astrais, o universo?
Mas no magnífico painel “A palmeira e o raio”, passais da estreita lógica dos sentidos para a lógica transcendente do espírito, recordando a reflexão de Pascal quando diz que o homem é superior ao universo, porque o universo pode destruir o homem, mas sem ter consciência disso, ao passo que o homem a teria da própria destruição. Ali, êmula do “caniço pensante”, a nobre árvore pensante e falante, a majestosa rainha da floresta, se mede, serena, com o bruto fogo gerado pelo choque colérico das nuvens, e celebra, em hosana místico, a sua própria heróica morte:
Acertaste, afinal, Raio ardente...
E venceste. Obrigada.
É uma glória morrer a tormenta desfeita,
sob o vento, o granizo, o trovão; morrer quando
sobre mim se despenha o universal assalto;
resistir a cantar, sustentar-me direita,
na divina embriaguez do perigo, e, cantando,
cair varada assim de um golpe que vem do alto.
Assim, através de odes e idílios, páginas claras, algumas e páginas sombrias, muitas, se chega à história do Açude, verdadeira alegria em que sintetizais o vosso doutrinamento sobre a vida transfigurada pela arte.
Esses três livros – suposto que fossem únicos, mas é de esperar, e sobretudo de desejar, que o não sejam – bastariam para representar uma carreira literária completa, fornecendo-nos os traços essenciais do poeta e do pensador.
O autor é um contemplativo e um melancólico; a sua nota predominante é a elegíaca. No adolescente trépido e grave das Urzes se esboçava um vago pressentimento de tristeza, ainda ignaro das próprias origens, e certamente irresoluto na sua objetivação. Nas Névoas (título assaz mesto ainda este), já se deu o encontro com as asperezas da sorte, e foram tocados os contrastes, os conflitos, que se abrem a cada passo entre o que devera ser e o que é, entre o ideal e a realidade. Há já descontentamento documentado, e nostalgia pungente... a nostalgia do país da quimera, para onde as servidões crescentes da labuta social tornam cada vez mais árduo, e mais raro, e mais breve, o regresso...
Mas nas Espumas o desencanto é evidente. Desaparece aquele pudico escrúpulo que a tantos, por motivos religiosos, ou pessoais, veda por longo tempo a franca profissão do pessimismo. A felicidade pessoal pode existir, existe de fato. Mas a vida em si mesma, tomada como conjunto, como sistema, é má, é monstruosa no seu imenso luxo, no seu desvairado fulgor. E ao mais feliz dos homens, se não é um egoísta cego e surdo (mas pode o egoísta ser humanamente feliz?) o espetáculo olhado, sentido, ouvido, de tantas dores, de tantas misérias, de tantas iniqüidades, de tantas baixezas, de tantos delírios, de tantos martírios, de tantos horrores, não pode deixar de amargurar e combalir a felicidade. De resto, Nietzsche disse uma palavra profunda, ainda que paradoxal, afirmando que só os felizes têm, filosoficamente, o direito de ser pessimistas. Que importa
o perpétuo esplendor das cousas transitórias?
Eles se enamoram talvez da perpetuidade, mas não participam dela; transitam, e desaparecem e a perpetuidade impossível suscita, nutre, gasta e devora outras e outras... Suspirais:
Sem conhecer o mundo, achei-o triste e augusto.
E, tendo-o conhecido, gemeis:
Quanta fadiga vã! Quanto tempo perdido!
Como o sonho é enganoso!... Ai de mim! Se eu pudesse
Partir segunda vez, e nunca mais voltar!
Em vão, como pesaroso e remordido do mal que a vossa filosofia possa fazer a almas nascentes, exclamais depois de mostrar o jovem carvalho, o cedro adolescente, o arroio jovial, o galo novo, o potro brioso e árdego – todos embriagados pela alegria de viver:
Só vós, moços, chorais a vida que aborrece!
só vós pedis à vida o que ela dar não pode,
e só vós recusais os bens que ela oferece!
Que valem os tesouros de Golconda, se não está entre eles aquilo que anelamos? Assim Leopardi, no “Canto noturno de um pastor errante da Ásia”, mostra o solitário pegureiro atordoado e perdido na imensidade do mundo, entre o jogo das forças naturais cuja razão de ser ele inutilmente investiga, e vítima, por fim, de incoercível tédio, em contraste com o rebanho que o rodeia, plácido e feliz, porque inconsciente...
Em rigor, dos vossos livros como a maioria dos livros modernos, a conclusão seria a inércia, a extinção voluntária do desejo, a renúncia a toda atividade, o puro Nirvana búdico. Por fortuna, como há lógicas funestas, há também incoerências salvadoras; e não é em vão que somos ocidentais. A mera contemplação do faquir não se adapta à nossa índole; que, se nos convencemos da nossa existência pelo pensamento, segundo a fórmula de Descartes, precisamos da contraprova do movimento para nos sentirmos realmente vivos.
É o que nos expondes vós mesmo com toques magistrais no poema que remata o vosso último livro: O Açude. Aí vemos o homem de talento e de vontade, que, em luta com obstáculos inúmeros, concebeu, planeou, levou a cabo a sua maior obra... a maior até então.
O povo o aplaude e aclama; o seu nome anda em todas as bocas; o seu trabalho colossal é meta de uma contínua romaria de gente, que se queda, pasma, diante de tamanho empreendimento. Mas o criador se esquiva ao amplexo indiscreto e importuno da turba, e abandona a si mesma a sua criatura, já capaz de cumprir os fins e prestar os serviços, para que foi destinada. A multidão, por seu lado, ciosa da própria soberania, e mais ávida de cortesanices que os reis, encolhe os ombros, amuada, e esquece, e renega o seu ídolo, correndo à cata de outro que melhor a saiba escravizar adulando-a. Um amigo dos maus tempos, como dos bons, se julga no dever de ir confortar o homem ilustre, que ele conjetura inconsolável da crescente impopularidade.
Mas o homem ilustre, serenamente, lhe responde:
Que me importa o rumor, transitório, ou perene,
que afetuoso me exalte, ou duro me condene?
que a obra feita pereça, ou dure e brilhe ainda,
se findou para mim, desde que a dei por finda?
Tudo quanto me alenta o esforço – é o próprio esforço.
Como quem, sobre um lenho, erra por sobre o dorso
mutante da água viva, ora os remos batendo,
ora os remos largando, insaciável bebendo
todo o vário esplendor da infinita paisagem,
sonhando entre dois céus, e só termina a viagem
quando é força parar, e, parado, só pensa
em reatar bem depressa a ebriedade suspensa
– tal eu vou pela vida, ansioso, de obra em obra...
O esforço é bom, quando nos ergue e nos arrasta
no turbilhão da vida e do sonho! E isto basta.
E, depois de assim falar,
...tomando o compasso e o esquadro, e reacendendo
no olhar a chama azul que ia, há pouco, perdendo
de novo se debruça, arfante, sobre a prancha;
traça, emenda, refaz, recomeça e desmancha...
Eis o transunto fiel da vossa própria alma, apaixonada pelo ideal em si, e pronta a suportar a solidão, antes, a gozá-la, se a sorte vo-la impusesse. Mas a vossa arte é hospitaleira e amiga; poeta lírico, não podeis ausentar-vos dela, como o engenheiro se ausentou das represas, que construíra. Prezar os vossos versos, é prezar-vos necessariamente a vós mesmo.
E em país como o nosso, onde as grandes massas populares ainda não apertam como polvos de milhões de tentáculos senão os ídolos políticos no momento do apogeu – e de resto, às vezes, para melhor os estrangularem mais tarde – não vos podeis queixar do acolhimento encontrado pelos vossos livros entre os bons e leais entendedores de poesia. A Academia quis consagrar, não só esse acolhimento, mas sobretudo o valor intrínseco dos vossos escritos. – Assim, vos chamamos para aqui, como companheiro excelente, correligionário, e irmão de armas, a fim de conosco discorrerdes dos altos anelos do espírito, a fim de combaterdes conosco os justos combates contra o materialismo dos critérios e das cobiças, que pela errada, ou deficiente compreensão deste momento histórico, ameaça, hoje talvez mais que nunca, a personalidade intelectual e moral da nossa pátria.
Não vos arredeis nimiamente daquela desproporção entre o ideal sonhado e o seu reflexo exterior, que é sabido tormento de todos os verdadeiros artistas; tormento racional e nobre, contanto que leve ao progresso, e não ao desalento. É a Perfeição a dama dos nossos pensamentos. A quantos, porém, se concede ela toda, e sempre? Cumpre-nos amá-la com a devoção antiga do cavaleiro andante para com a sua dama escolhida. Um sorriso dela, uma flor, uma fita atirada de longe, faziam do paladino apaixonado o mais venturoso dos amadores. E se lograva o premio inaudito de beijar-lhe as brancas mãos... Deus! era o Éden, era o céu na terra!
Nem temais atingir os limites extremos do sonho; porque este se renova sem cessar em almas como a vossa. Eles refletem, como o ano, o giro vário e harmonioso das estações; e como do verão nasce o outono, assim do inverno renasce a primavera. Alternai, pois, as flores e os frutos; não desdenheis as mesmas folhas caídas, com a sua bela cor de sangue, e o seu humilde sussurro sob os pés do caminhante; e, se o vento, acaso, na sua fúria lamentosa, arremessar em vossas mãos algum bloco de neve arrancado à montanha da tristeza e da desolação, transmudai-o em cristal de rocha, ou em diamante, no ambiente miraculoso da arte, e facetai-o como gema de sombrio fulgor...
Continuai a dar-nos, como os versos que admiramos, novas páginas da vossa prosa, que, sóbria, tersa, elegante, opima de pensamento e cultura, só teve até hoje o defeito da sua escassez. Dela acabamos de apreciar um robusto e delicado exemplo no vosso magnífico discurso.
*
Senhor Amadeu Amaral, com precisão e eloqüência, com colorido e movimento admiráveis, evocastes o vulto querido de Olavo Bilac. Retraçastes-lhe a figura familiar, a figura intelectual, a figura heróica, e o verbo ainda uma vez se encarnou em pessoa viva, ou rediviva. Foi como se o poeta, regressando de uma das suas longas viagens costumadas, tivesse aparecido, simplesmente, naturalmente, entre nós esta noite, restituindo aos que o conheciam o sempre novo encanto do seu cordial sorriso tendente a ampliar-se em riso, da sua palavra cálida e profunda, da sua gentileza e do seu garbo, de todo o seu temperamento amável e sociável.
Mas não são demais duas vozes a glorificá-lo. Hoje é um dos dias da sua apoteose. Como nos surtos inflamados da ode, como na arquitetura ondeante e complexa da sinfonia, como no fluxo e refluxo do mar, como (se pudéssemos ouvi-la) na harmonia mesma das esferas, como, enfim, no ritmo da nossa própria dor e da nossa saudade, há também no ritmo da glória humana os seus momentos de vibração culminante.
Vós e eu, senhor Amadeu Amaral, temos nesta hora a tão insigne como árdua honra de interpretar o sentimento nacional, que há de alargar-se no futuro – eu firmemente o creio – até as raias da universalidade. Pois a nossa pátria, em que pese aos seus detratores, sobretudo aos nascidos dela mesma, aos matricidas que apunhalam o seio onde se nutriram, se imporá, cedo ou tarde, ao mundo na opulência e no fulgor da sua vida integral. E um dos nomes que ela ensinará então, às gentes, caro entre os mais caros, como quem nas suas mãos puras pretende os brasões e os pergaminhos da sua nobreza, será o de Olavo Bilac.
As minhas primeiras impressões do então jovem e já célebre poeta se assemelham às vossas. Eu também deparei com a sua fama desabrochada como um rosal vermelho, no limiar da minha adolescência. E o seu nome claro e sonoro foi para mim um rebate de glória. Era a idade... aquela idade “inquieta e duvidosa”, que há para os rapazes, como para as raparigas; aquela idade em que a sensibilidade extrema dos nervos do coração palpita ainda intacta e indefesa, porque as primeiras lições da experiência ainda lhe não ensinaram a retrair-se, como as folhas da Mimosa pudica. Era, nela, a visão confusa, flutuante e deslumbrada do mundo, inebriando como um licor dourado e capitoso nunca antes provado... Uma parte, aliás, bem pequena do mundo, entre São Paulo de então e o Rio natal, ainda longe os seus vindouros avatares, imperialmente sossegado e recolhido...
Mas que arcanos, que seduções, que abismos não adivinharia aí um menino saído apenas dentre os muros do colégio? Depois do diuturno e sereno tirocínio com as palavras venerandas da antiguidade, vinha a excitação maravilhosa das vozes vivas, das vozes que exprimiam a emoção moderna, que correspondiam ao estado mesmo, indeciso, trepidante, anelante, esquisitamente doloroso e amoroso da minha puberdade. A minha própria voz murmurava alguma cousa; murmurava, balbuciava. Como na avena primitiva os dedos de um Dáfnis inexperto, tocando ora uma, ora outra das fendas da cana, imprimiam ao sopro tímido modulações imprevistas, e ele se escutava embevecido de surpresa, assim o metro e a rima, adaptando-se espontâneos aos meus suspiros por um bem desconhecido, às minhas queixas por um mal indefinido, a todos os frêmitos dessa crise misteriosa da criança que se transforma em homem, me penetravam de uma febre estranha, sutil, dileta, no silêncio da minha casa e da minha obscuridade.
Mas o instrumento era demasiado frágil para aquela vasta orquestração que as paixões nascentes reclamavam; a taça era demasiado pequena para essa catadupa, esse rio bramante e radioso de sensações novas, era como a concha com que o menino, encontrado numa praia do Mediterrâneo por Santo Agostinho, pretendia esvaziar o mar...
E eu, então, instintivamente, buscava em outros, nos grandes, nos mestres, a linguagem profunda e suntuosa do que eu experimentava mas era incapaz de traduzir. Entre mim e eles se estabelecia esse vínculo de comunhão extática, adorativa, que, mesmo entre o fragor dos supremos triunfos, deve ser o mais doce prêmio dos artistas célebres, quando há neles homens, e não meros fantoches de vaidade. Horas inefáveis de orgia espiritual, que por vezes, com absoluto esquecimento de estudos, repastos, passeios, de tudo o que não fosse ela mesma e as suas delícias, se prolongavam até o albor e o arrepio da madrugada! Quantos, os meus confidentes e iniciadores de então!
Lamartine, cuja influência foi das primeiras e das mais duráveis, me atraía poderosamente pela sua vaga mas íntima religiosidade, fundida com o culto cavalheiresco do eterno Feminino, e por aquele singular magnetismo pessoal, que se transmitia a cada linha do seu punho.
Victor Hugo me arrebatava, mas, um pouco, me fatigava a espaços; com o martelamento, rico de fagulhas astrais, das suas estrofes grandíloquas, e com a audácia das suas metáforas e com a truculência das suas antíteses.
Musset realizava airosamente certas veleidades minhas de dandismo e sucesso mundano, entre espáduas marmóreas e frívolos leques perfumados, mas me vertia em torrentes melodiosas a volúpia da dor nos trenos das suas Noites. De Byron eu sentia a grande vida na minha vida pequenina, saciando a sede de aventuras que desvaira os jovens canários reclusos em gaiolinhas de bambu, e, como os que se moldam pelos tipos dos romances que lêem, me deleitava ardidamente emprestando o eco dos seus vastos clamores aos mínimos balanços do meu coração desocupado. Schiller me prodigava as ilusões da sua alma límpida e generosa como os vinhos do Reno, ao passo que Goethe me dizia com serenos lábios as sínteses de uma sabedoria sublimada, incompreensível ainda para mim. Manzoni erigia o áureo pedestal perpétuo da sua ode para o vulto de herói que fascina todos os adolescentes, na
procellosa e trepida
gloria d’un gran designo,
segno d’immensa invidia,
e di pietà profonda,
d’inestinguibil ódio,
e d’indomato amor.
Foscolo me fazia sonhar de olhos abertos com a amica risanata e a amica gentile, e nos sepulcros me incutia a fascinação da morte, cara, muitas vezes, não sei por quê, aos afebos no abalo da puberdade e nas Graças iluminava, incendiava, as puras formas da beleza helênica ao calor da pira de sensualidade, em que ardia ele mesmo sem tréguas. Gautier com a fria perfeição dos seus Esmaltes e Camafeus, e vinha Banville com o seu prestigioso funambulismo rítmico, e Baudelaire com os filtros das suas volúpias satânicas, e Leconte de Lisle com a formidável polifonia dos poemas antigos, bárbaros, trágicos, e Heredia com os cem quadros maravilhosos dos seus Troféus, e Sully Prudhomme com aquela sutil, complexa, meditativa e profunda sensibilidade, que bem se irmanava com a minha própria... E quantos, quantos ainda, mesmo falando só dos poetas, que não menos numerosos, naturalmente, eram nessa ínclita assembléia os prosadores de todos os gêneros e todas as procedências!
Mas esses falavam línguas peregrinas; outros havia, mais caros ainda, que na nossa modulavam as vibrações das suas grandes almas. E eu já do colégio trouxera o amor iluminado do nosso belo e nobre, forte e meigo, sólido e delicado idioma, assim como a fé, que tenho cada vez mais, na glória dos seus futuros fastos. De Garrett, por exemplo, posso dizer a íntima e permanente ação exercida sobre mim pela singular magia da sua obra, e da sua excepcional individualidade. Em Herculano – o Herculano da Harpa do Crente – admirei e admiro um temperamento titânico de poeta, que mal andou em abandonar os versos, embora para conquistar imperecível fama com a sua prosa, que é, ainda, prosa de poeta. Castilho, se me não podia dar muito (algo dava todavia) quanto à originalidade do pensamento e do sentimento, foi-me professor eminentíssimo nos recursos do vocabulário e no ritmo; o ceguinho colhera pelo ouvido tesouros de erudição literária, e o apurara até requintes não comuns nos mesmos profissionais da música. Esses já os lera ou então, iniciando-me paralelamente na conversa dos românticos nacionais.
Mercê das suas tendências místicas, Araguaia nos era inculcado no colégio onde fiz os meus estudos; arrebatavam-me ali as suas tiradas filosóficas, das quais, porém, não tardei muito a sondar a fraqueza declamatória; mas ficou-me, com a admiração por aquela vasta e reboante sinfonia de “Napoleão em Waterloo”, por muitos quadros magistrais da Confederação dos Tamoios, e muitas formosas páginas dos Suspiros Poéticos, a reverência devida a uma alma de grandes anelos e altas concepções, nem sempre servida, infelizmente, por um temperamento artístico de adequado valor. Porto-Alegre, ora injustamente esquecido, franqueava-me nas Brasilianas uma galeria de telas tropicais sedutoras pela frescura do colorido, e ao Colombo, sem dúvida árduo de percorrer, por escassez de emoção histórica e humana correspondente a tamanha extensão, nos seus quarenta cantos, não poucos painéis murais de linhas grandiosas, verdadeiras perspectivas de pintor cíclico. Imergi-me com Gonçalves Dias no oceano as cousas; era a natureza americana – fantástica e imensa – deixando entrever, para além das suas divisas, uma natureza, ainda maior e mais assombrosa, mais povoada de mistério; e senti com ele como, partindo do encanto familiar da florzinha nascida no nosso jardim, ou da palmeira que se ergue de um recanto da nossa chácara para o espaço, podemos abranger pelo olhar e pelo sonho um espaço muito mais amplo, indefinido, todo o espaço, acolher no nosso coração os vales e os montes, os bosques e os rios, as nuvens e os ventos e os astros, e a causa das causas que em tudo vive e opera, aquele Agente universal e eterno de que fala o florentino,
l’amor che muove il sole e l’altre stelle.
Outros me atraíam com uma sedução especial de camaradas, porque eram moços, e moços permaneceriam para sempre na nossa lembrança. E se Casimiro de Abreu enlevara sobre tudo a minha puerícia com a sua sensibilidade que conservara até o termo da breve carreira uma deliciosa pureza infantil, Álvares de Azevedo, Fagundes Varela e Castro Alves tinham sido estudantes, como eu principiava a ser, com uma consciência um tanto filauciosa da importância de um tal titulo.
Eu não sei qual é a disposição da juventude de hoje para com os escritores em voga, mas naquele tempo a qualidade de literato, sobretudo de poeta, conferia, entre nós, uma espécie de realeza, não separada de uma certa aura de indisciplina moral, para dizer tudo, de desordem nos hábitos e relaxamento nos costumes. Ao lado de Bluntschli e Carrara, de Comte e Spencer, de Schopenhauer e Hartmann, os Sonetos e Rimas; as Crisálidas e Falenas, as Meridionais, as Sinfonias eram livros de cabeceira nas repúblicas, lidos, relidos, decorados, e discutidos calorosamente. Os autores viviam, andavam por aí, podia a gente encontrá-los numa sala, ou num café.
A alguns dos nossos companheiros, as relações pessoais que tinham com Teófilo Dias, ou Raimundo Correia, granjeavam particular consideração. Eu olhava de fora esse Olimpo um tanto disperso, com desejo e receio de contemplar as frontes dos cumes, e a figura hierática de Alberto de Oliveira, entrevista acaso na Rua do Ouvidor, me confirmava nessa impressão de reverência. Estremeci de júbilo crendo encontrar um Mentor caído do céu em um moço paraense, chamado Araus, que freqüentava as rodas da boêmia literária, e me levara uma tarde – o nosso ilustre colega esqueceu decerto a obscura visita – à casa de Medeiros e Albuquerque, o vate audacioso e demolidor dos Pecados, então muito magro e pálido, dono de um chapéu cônico de abas intermináveis, e de um colete escarlate que já se enxergava da porta do Castelões quando ele apontava no Largo de São Francisco...
Mas eu já penetrava antes na mais alta e serena das torres ebúrneas da época, na esconsa e penumbrosa mansão do Cosme Velho, onde, entre os sussurros das árvores antigas e das águas eternas, o criador de Brás Cubas e Quincas Borba tão à risca praticava o conselho do sábio: “Ami, cache ta vie...” Machado de Assis fora para mim de uma bondade acolhedora e generosa, e surpreendera-me a simplicidade grave e suave a um tempo do grande mestre, que devia em breve tornar-se tão grande amigo. Levara ele a sua condescendência ao ponto de ler os meus desbotados versos de colegial, e de escrever-me uma carta animadora.
O próprio Machado de Assis me falara de Olavo Bilac com apreço grande, certa manha, no seu frondoso eremitério. “Apareceu ultimamente um poeta...” disse-me. E a sua glória purpurejou sem tardança no horizonte daquela geração entusiástica.
Era, pois, Olavo Bilac o mais moço dos nossos poetas consagrados, o que eu devia sentir mais próximo de mim, o que eu mais desejava, naturalmente, conhecer. Mas teria ele a mesma benevolência de Machado de Assis, que era um escritor à parte, sem aderências com a boêmia ainda fiel às tradições dos bardos românticos de São Paulo e do Recife? Diziam-no terrivelmente trocista, e de humor variável.
Por um curioso acaso foi o próprio Machado de Assis quem me apresentou, quando eu menos o esperava, a Olavo Bilac. Tinha publicado a Gazeta uns versos meus com o título de “Rosa-chá”, assinados simplesmente M. A.; Olavo Bilac – parece até incrível – por blague e para bulir com o mestre, teimava, vista a identidade das iniciais, que os versos eram dele. Passava eu, nesse momento, pela calçada oposta. Machado de Assis chamou-me para o grupo. “Tanto é verdade o que lhe afirmei – tornou ele gaguejando um pouco para o seu jovem confrade – que aqui está o autor. Tenho muito prazer em apresentar-lho.”
Eu que tanto ambicionava conhecer o poeta, mas ao mesmo tempo hesitava em dar passo algum para isso ficava assim mercê de um gracejo dele, e da gentileza carinhosa de Machado de Assis em condições de intimidade com um escritor já célebre. Foi esse o início da nossa longa amizade. Por sua mão entrei eu nos famosos cenáculos literários, onde tive, a princípio, de chamar a campo todo o meu sangue frio, para não perder o aprumo ao embate dos paradoxos e remoques tradicionais, com que ínclitos veteranos empreendiam a tarefa de desingenuizar o ádvena, o calouro tímido e inexperto. Mas cumpre ajuntar que, por baixo daquele aparato e chufa superficial e passageira, havia um fundo de cordialidade sincera, transbordante, e um culto de cruzados pelo ideal...
O êxodo provocado pela revolta da armada, e pela política feramente repressiva do Marechal Floriano, reuniu-nos em São João del Rei, e mais assiduamente em Juiz de Fora, onde trabalhamos juntos em camaradagem fraternal, que é uma das belas reminiscências da minha vida. Pude então saborear dia a dia todas as delícias da sua intimidade, vê-lo, hora por hora, como ele realmente era, pródigo de talento não só nos versos e nas crônicas, mas na espontaneidade da palestra, cintilante de alegria e de chiste, pronto sempre a divertir-se como uma criança sem a mínima preocupação dos foros da sua soberania literária, rico de generosidade e de piedade cristã através dos motejos aparentemente cáusticos com que pungia apenas a epiderme das vitimas, e todo penetrado, já então, por entre o furor e o asco que certos episódios da politicalha lhe causavam, de um amor profundo e imenso pela alma sacra da pátria, alheia e superior às lúgubres palhaçadas dos seus momentâneos dominadores.
Separou-nos depois a diversidade dos nossos destinos. Mas, por entre largos silêncios, e alguns dissentimentos transitórios, o recíproco afeto durou sempre intacto. Eu continuei a acompanhar de longe com o mesmo prazer a ampla série dos seus triunfos, e a entristecer-me com as suas tristezas, quando a notícia delas chegava até mim. E agora, já depois de desaparecido o poeta, sei, por testemunhos numerosos, a bondade e o carinho com que ele a mim se referia. Cousas doces de relembrar quando se pensa que a maior das glórias fora um dom estéril, sem o eco da humana sensibilidade, sem a vida do coração...
O “príncipe da mocidade!” Este fora logo o seu título cesáreo. Alberto de Oliveira estava ainda na sua fase “marmórea”, longe daquele fremente e doloroso panteísmo, que devia mais tarde afogar num oceano sem praias a áurea taça grega das suas primitivas libações. Raimundo Correia tinha uma sua peculiar sensualidade, aguda, pudica e esquiva; os sonhadores de entre quinze e vinte anos, que precisavam de gastar fartas somas de veemência verbal para qualquer mínimo desvio do pêndulo cardíaco, achavam-no perfeito, mas frio.
Olavo Bilac trazia, com um brilho extraordinário, a nota exata das sensações e dos sentimentos que predominavam. Os rapazes, sobretudo os que não compõem versos, costumam fazer dos vates prediletos uma espécie de secretários galantes. Ora, o amor, que Olavo Bilac exprimia, tinha a fisionomia da época. Nem os delírios desgrenhados do romantismo em decadência, nem as complicações cerebrais e as perversidades sádicas, que entraram em voga depois. Era um amor ardente em particular no sangue, nos nervos, mas equilibrado, e eloqüente e elegante.
Os noivos, para se comunicarem com as noivas na linguagem do sonho, decoravam a Via Láctea. Os outros, os que viviam provisoriamente fora da lei, recorriam de preferência às Sarças de Fogo. As Panóplias forneciam as suntuosidades do entreato núptico e histórico às pausas da emoção amorosa. Até na falta de toda preocupação mística, na ausência quase completa de Deus, correspondia o livro de Olavo Bilac aos pendores daquela geração educada no positivismo e no materialismo, com o concurso da musa anticlerical de Guerra Junqueiro.
Era pelo menos assim, que se liam e se entendiam os versos do jovem pagão. Mas o poeta valia mais do que os seus admiradores. Estes não possuíam olhos assaz penetrantes para sondar as correntes ocultas sob o espelhamento ligeiro e superficial das ondas, nem ouvidos assaz finos para colher o acompanhamento em surdina, vago mas já imenso, que se espraiava ao redor do pean entoado por ele à força e ao júbilo da existência. O que havia já de transcendente por entre os idílios da Via Láctea, de interrogativo e ansioso no tumulto dionisíaco das Sarças de Fogo, escapava à medíocre perspicácia da maioria. No lago célebre colóquio com as estrelas via a gente apenas uma fabulazinha engenhosa, sem adivinhar o simbolismo desse apelo celeste, da advertência salutar: “Non solo pane vivit homo, sed etiam verbo Dei.”
Por isso muitos talvez, os que, no decurso dos anos, tinham permanecido tais quais, estranharam e quase desconheceram o seu ídolo no novo avatar da Alma Inquieta. Nele se operava, sim, uma transformação, mas radicalmente lógica. A pessoa ficava, em substância, a mesma; só, porém, nos limites em que era a mesma fisicamente. Como no seu rosto, havia no seu espírito o toque dos anos não em vão decorridos. Que eles só passam em vão para os imbecis.
Através da famosa boêmia dourada a que ele pertenceu, a que um dos seus mais ilustres companheiros, Coelho Neto, ainda recentemente comemorava com saudade, através das experiências passionais, das aventuras políticas, das viagens longas e freqüentes, da colaboração cada vez mais relevante na imprensa e na vida integral do país, a sua emotividade poética progredira em amplitude e em profundeza. Mas o poeta da “Avenida das lágrimas”, de “Midsummer’s night’s dream”, do “Incontentado”, de “Dormindo”, de “Tédio”, existia já em gérmen naquele que exclamava, entre os seus terrenos delírios:
Ah! como dói assim viver, sentindo
asas nos ombros e grilhões nos pulsos!
naquele que punha este epílogo à “Tentação de Xenócrates”:
Pode rugir a carne... Embora! Dela acima
paira o espírito ideal que a purifica e anima.
cobrem nuvem o espaço, e acima do atro véu
das nuvens, brilha a estrela, iluminando o céu!
Idêntico fenômeno se dava nas suas crônicas e fantasias em prosa. O vulgo percebia quase exclusivamente o traço chistoso e a verve. Não se lhe antolhava que elas podiam ter por epígrafe geral o dito de Fígaro: “Rio para não chorar”. O ambiente público daquela época aminosa se mostrava demasiado grosseiro para a franqueza e a nobreza das lágrimas. A ironia era forma, um pouco despreziva, mas ainda amante da piedade. E tal ironia não ressumava o turvo e revolto amargor do humorismo, esse mesmo tão compadecido, de Machado de Assis. Nós seus períodos límpidos e polidos, como jóias de um ourives artista da rue de La Paix, o tremular do pranto, quando o havia, estava tão perto da cintila superficial do riso, que só uma vista rudimentar o não discerniria; mas essa vista rudimentar é sempre a do maior número.
O descontentamento de nós mesmos e dos outros pode ser nos animais sociais, ou, pretende alguém, gregários, que nós somos, um fator de ruína ou um elemento miraculoso de progresso. Tudo depende da têmpera do caráter. Os fracos, pela incapacidade de resistir aos embates das massas ambientes, e ao próprio conflito interior, descambam numa inércia lamentosa e lamentável, quando não naufragam no marasmo, ou no suicídio. Os fortes deixam-se saturar quase voluptuosamente pelos ácidos corrosivos da atmosfera onde se sentem mal, e no momento em que a saturação atinge o máximo grau suportável, reagem com violência indômita, ou com premeditada frieza, ainda mais decisiva, por vezes, nos seus resultados.
Diante de uma dessas manifestações despóticas da fé e da vontade, o vulgo lendo escancara a boca numa gargalhada alvar, encarnecendo: “Que tal nos saiu este cético!” Mas, assim como certos misantropos, quando abrem uma exceção na sua misantropia em favor de alguns amigos, se provam amigos incomparáveis eles próprios, também muitos céticos não são mais que entusiastas disfarçados, paladinos do ideal em disponibilidade involuntária. Acresce que há duas categorias de céticos: os que descrêem dos princípios da verdade, da virtude, e os que descrêem apenas dos homens; e entre esses, nenhum descrê de todos os homens.
O ceticismo de Olavo Bilac! De tal ceticismo ele aliás, contrito, se penitenciou mais tarde... mas, em suma, ressalvando naturalmente opiniões professadas sobre indivíduos que haviam dado mostras inconcussas da sua especial moralidade particular e pública, não passava de um vinco de blague contraído nas noitadas da boêmia, e de um desses recursos estratégicos, que amiúde empregamos na conversação, sem nos presumirmos por isso nenhuns perigosos demolidores.
Um crente é que ele era, e um espírito militante; negava, mas para melhor afirmar; e só destruía com a mira em uma reconstrução mais justa e mais vital. Para chamar a campo um caráter desses, obrigando-o a despender, sem contar, todo o seu vigor, toda a sua iniciativa, só isto é necessário: uma causa que o mereça. Nem é de admirar que Olavo Bilac não a houvesse encontrado aqui nos anos decorridos desde a vitória do abolicionismo; pois, se ele tomou partido pela armada revoltosa contra o governo do Marechal Floriano, nunca pensou decerto que qualquer dos chefes empenhados na luta valesse um dos seus formosos poemas...
A “hora da revelação”, que pode tardar, mas não falta, na existência de um homem fadado a grandes empreendimentos, devia soar para ele em plena madureza, como soara para Joaquim Nabuco no limiar da mocidade. A deste, escrevi em um dia, foi a da visita à fazenda de Massangana; a de Olavo Bilac tiniu clara, precisa, imperativa, no fragor dilacerante da guerra: dessa guerra, desmoronamento imane e trágico, catástrofe onímoda mas catástrofe, sobretudo, moral, catástrofe de ilusões, que nós havíamos erguido à categoria de axiomas, baseando nelas a vida e a obra comum da humanidade. É triste, e é deprimente para esta, ver que tão cedo parece ter-se esvaído na memória de muitos a impressão de tais acontecimentos, quando aliás eles pesam ainda sobre a bolsa e o estômago, os dois órgãos mais melindrosos das maiorias... Mas a quantos abriu ela os olhos e desanuviou a razão... para sempre!
À luz sanguínea dos relâmpagos que avermelhavam os quatro pontos cardeais, Olavo Bilac teve a intuição superior da nova história e da situação do Brasil nela. E compreendeu que não havia um momento a perder. Encaminhar a nação por entre as dificuldades jurídicas e políticas de uma luta mundial, cujo alcance moral se apresentava nítido ao nosso critério, levá-la de ato em ato, através de cada afronta do inimigo contra os interesses e as convenções mais sagradas, a intervir em defesa da justiça num pleito de que os ausentes só danos podiam esperar, grandes passos eram esses, mas eram apenas os primeiros passos. De tal atitude derivava para o Brasil uma posição nova na assembléia das gentes. Achava-se ele apto e preparado para condignamente ocupá-la?
Em tais momentos críticos da vida de um novo, como da de um homem, instintivamente se procede a um balanço real das vantagens e dos prejuízos, das forças e das deficiências, dos méritos e das culpas a um severo exame de consciência. Olavo Bilac foi um dos que com maior prontidão e mais integral profundeza personificaram naquela volta da história a consciência do povo brasileiro.
Ele viu um território imenso, feracíssimo, futuro arsenal e celeiro do mundo, mas escassamente povoado e inexplorado em grande parte viu a civilização implantada quase exclusivamente no litoral, e para o interior núcleos esparsos de população, entregues à ignorância, à falta de higiene, à superstição grosseira, aos preconceitos e ódios hereditários de um feudalismo medieval, aos crimes e às represálias de uma verdadeira máfia siciliana; viu em contraste com a primeira aristocracia intelectual da América Latina, a turba inumerável dos analfabetos representando uma proporção que nos envergonha ao termo de um século já de existência independente; viu, em contraste com o preparo militar e cívico, não só das nações européias mas de algumas Repúblicas vizinhas, viu, de um lado, a abstenção eleitoral arvorada em sistema, a renúncia tácita e crônica das maiorias ao direito e ao dever de governar por meio dos seus mandatários de outro, a aversão generalizada contra o exercício das armas, as cidades e os campos indefesos, as fortalezas mal guarnecidas, as fronteiras quase abandonadas no caso de uma agressão – e a guerra aí estava provando, pela milésima vez, como é fácil encontrar pretextos para as agressões mais proditórias e iníquas...
Mas viu, sobretudo, a imensa responsabilidade dos governos e das classes dirigentes, que tinham fechado os olhos ao reclamo de necessidades tão imperiosas, ou as tinham tratado como pontos secundários dos seus programas, quando aliás teriam podido, com perspicácia, método e perseverança, conseguir prodígios de um povo naturalmente tão bem dotado como poucos no mundo. E viu, sentiu com amargura, exagerou até a sua própria responsabilidade de cidadão e escritor, e a de toda a sua geração eivada de “fermentos anárquicos”... Apelou então, numa crise de remorso e num esto de incoercível esperança, para a mocidade, para a alma intacta e pura da mocidade, naquele famoso discurso, de São Paulo, que foi o seu primeiro grito de rebate, o início da maravilhosa campanha de civismo, em que ele não mais descansou até morrer.
Senhores, nós todos tomamos parte, de perto, ou de longe arrebatados pela magia e pela profunda razão do seu verbo, naquele esforço hercúleo e sabiamente ordenado em prol de uma pátria melhor, da pátria que devemos ter, e que havemos de ter. Nós todos acompanhamos com interesse, não de quem assiste a um drama empolgante, mas de quem age nele pondo em jogo a própria honra e a própria vida, a sua saudação às classes armadas no Clube Militar, a sua propaganda do serviço militar obrigatório, do ensino primário obrigatório, a sua ação indefesa na Liga da Defesa Nacional, o seu empenho pela multiplicação das linhas de tiro e dos grupos de escoteiros, as suas viagens pelos Estados, até os pontos mais remotos do país, e fora deste, na sala gloriosa da Academia das Ciências de Lisboa, nós o ouvimos definir com lúcida firmeza o caráter e os intuitos do seu nacionalismo, pelo culto da língua e das tradições raciais separando-o nitidamente de qualquer solidariedade com o nativismo jacobino que pretenderia construir em torno do Brasil uma nova muralha chinesa, isolando-nos das correntes contemporâneas, e de todos os influxos universais.
Ainda uma vez demonstrou o espírito a sua soberania. Aquele homem cansado, débil, enfermo, sobre cuja fronte pálida já pairava a sombra da morte, revela-se um suscitador prodigioso de energias e entusiasmos. Ainda uma vez se verificou que, mesmo em um tempo que timbra de prático e avesso à fantasia como o nosso, podem poetas desempenhar superiormente a missão augusta, que lhes cabia nas sociedades primitivas. Aqui Olavo Bilac, e Gabriel D’Annunzio na Itália, evidenciaram de que sopro germinal é capaz a voz acostumada a falar nos ritmos e nas rimas a linguagem sacra do ideal...
E é bem, senhores, haverdes escolhido para dizer-vos a repercussão íntima que o verbo de Olavo Bilac despertou, ainda nos corações mais distantes da pátria, um desses exilados amantes, a cujos ouvidos o nome do Brasil, aqui necessariamente banalizado, soa como soaria o nome de um amigo predileto, de um ser querido com extremo e ternura; ao escutá-lo, toda a atenção se concentra nele, toda a alma se tende na aguda curiosidade de saber que adjetivos o acompanham, que comentários o circundam, que sentimentos vibram no tom em que é pronunciado... Sim; eu escutei esse brado de alarma e esse hino de esperança com religioso fervor, como depois me embeveci na solene e fecunda poesia da Tarde; livro que devemos abrir e ler com respeito profundo, porque, supremo fruto da sua arte chegada à perfeição, é também filho da sua dor; e dá-lhe bem esse nimbo divino que o aureola...
Viverei! Nos meus dias descontentes,
não sofro só por mim... Sofro, a sangrar,
todo o infinito universal pesar,
a tristeza das cousas e dos entes.
Alheios prantos, em cachões ardentes,
vêm ao meu coração e ao meu olhar:
– tal, num estuário imenso, acolhe o mar
todas as águas vivas das vertentes.
Morre o infeliz, que unicamente encerra
a própria dor, estrangulada em si...
Mas vive a Vida, que em meus versos erra;
vive o consolo que deixei aqui;
vive a piedade que espalhei na terra...
Assim, não morrerei, porque sofri!
Agora, nos resta, ao lado de sua herança poética, o seu testamento político. Bela existência, e completa! Invejável destino! Ele é dos que não se ausentam mais. Ele é o guia que caminha diante de nós, pelo futuro afora, como Jeová diante dos hebreus na conquista de Canaã, coluna de fumo no brilho do sol, coluna de fogo na negrura da noite. E para suavizar as fadigas da longa jornada, e para emparaisar o repouso sob as tendas, ele nos dá o maná e as frescas linfas dos seus cantos melodiosos.
Dediquemos todos os nossos esforços à criação progressiva do Brasil que ele sonhou. Uma cousa sobretudo é urgente: levantar o espírito público, transmitir-lhe a segurança de que a nação pode vencer todas as dificuldades que a embaraçam, resolver todos os problemas, que a preocupam, contanto que firmemente queira. Cumpre-nos combater os que por nativa covardia, ou por vício de maledicência, deprimem e caluniam o povo. Não queremos as mentiras do falso patriotismo; não queremos o otimismo cego e surdo; não queremos a política de avestruz.
Queremos a verdade, mas a verdade serena e edificante. Queremos a livre crítica dos homens e das instituições, para melhoramento destas e daquelas, mas não a raiva patológica dos que sistematicamente desacreditam uns e outras, gerando só o caos da anarquia, ou o deserto da descrença geral. Queremos que a nação conheça bem em todo o seu alcance os obstáculos que lhe cumpre arrostar, os perigos que a ameaçam, mas medindo-se com eles esteada nas altas tradições da sua história e certa de que há de realizar integralmente a sua grande missão no mundo.
*
Senhor Amadeu Amaral, terminastes o vosso discurso comparando a obra de Olavo Bilac a uma soberba montanha. Permiti que eu complete essa bela imagem.
Em um dos meus recentes passeios pelos arredores desta cidade maravilhosa, eu vi, justamente no cimo de uma montanha, uma árvore que parecia pertencer à flora das lendas, ou ao paraíso terrestre. Era uma antiga e pujante mangueira, uma das genuínas matriarcas das selvas brasílicas. Mas uma circunstância inaudita a tornava única entre as suas irmãs. Milhares e milhares de pássaros, nossos e estrangeiros, tinham construído os seus ninhos entre as frondes de cálido bronze, que deixavam transparecer aqui e ali a tumidez dos pomos cor-de-rosa.
E a mangueira era, toda ela, um revoluteio de asas e um fervilhamento de gorjeios. Os casais de pássaros eram tão numerosos, revestiam, por assim dizer, a árvore de tal modo, que, quando a sua copa se agitava não se sabia se o movimento era dos ramos, ou das penas, e quando cardumes de pequeninos seres se destacavam dela, não se percebia à primeira vista se eram as avezinhas, ou as folhas, que voavam. E, pelos ares em torno, errava uma incessante harmonia, um concerto fantástico, prendendo por horas os passos do viandante extasiado...
Na montanha de que falastes, montanha majestosa, mas acessível e hospitaleira, eu vejo uma árvore semelhante a essa, com o tronco ereto, e as raízes profundamente imersas no solo natal. Subamos a montanha; vamos à sombra das frondes opulentas colher os frutos da sabedoria, e ouvir os cantos dos pássaros que não morrem. Cinjamos a árvore divina com os colares de pérolas, que os árabes consagravam às palmeiras solitárias dos oásis.
E ao gênio do lugar, ao poeta amado, levemos com os lírios às mãos cheias, que Virgílio pedia para a tumba de Marcelo, atributo da juventude perpétua, o laurel, emblema da glória e a hera que é o símbolo da eterna fidelidade!