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“Morram os vivos”

 

“Venhamos ao presente. O presente é a chuva que cai, menos que em Petrópolis, onde parece que o dilúvio arrasou tudo ou quase tudo, se devo crer nas notícias; mas eu creio em poucas coisas, leitor amigo. Creio em ti, e ainda assim é por um dever de cortesia, não sabendo quem sejas nem se mereces algum crédito. Suponhamos que sim. Creio em teu avô, uma vez que és seu neto, e se já é morto; creio ainda mais nele que em ti. Vivam os mortos!

Os mortos não nos levam os relógios. Ao contrário, deixam os relógios, e são os vivos que os levam, se não há cuidado com eles. Morram os vivos!”

O trecho acima, não preciso dizer, não é meu, é de Machado de Assis, publicado no dia 6 de janeiro de 1895. Vivam os mortos, morram os vivos! Naquele tempo não havia o péssimo hábito do “politicamente correto”. Um cronista podia dizer com sinceridade o que pensava e como via a realidade de cada dia. Aparentemente, Machado de Assis seria um monstro de cinismo. Era cínico, mas não era monstro. Foi um bruxo, isso sim. Voltemos a ele:

“Podeis concluir daí a disposição em que estou. Francamente, se esta chuva que vai refrescando o verão, fosse, não digo um dilúvio universal, mas uma calamidade semelhante à de Petrópolis, eu aplaudiria d’alma, contanto que me ficasse o gosto do poeta, e pudesse ver da minha janela o naufrágio dos outros.”

Como se sabe, Jonathan Swift (Dublin, 1667-1745) foi um dos mestres que mais influência exerceu sobre Machado de Assis. Apesar de magistrado e clérigo anglicano, o autor de As viagens de Gulliver chegou a propor que comêssemos criancinhas para evitar a superpopulação e a necessidade de proteínas. Os gênios sempre estão contra a corrente e afirmam, como Galileu Galilei, que não é o Sol que se move em torno da Terra, e sim o contrário.

Folha de São Paulo, 23/1/2011