Você pode estar apreciando um pôr do sol a 12 mil metros de altitude, nuvens lá embaixo, o brilho metálico da asa do seu avião, a eficiência calma e monótona dos reatores.
Lá em cima -ou ao seu lado- o sol faz aquele desenho que nos catecismos serve de fundo à aparição do Senhor: se você firmar a vista, com algum esforço poderá ver aquele triângulo com o olho dentro. É o Deus do seu catecismo e de sua caixa de fósforos, marca Olho.
Se do lado de fora a paisagem é monumental e bíblica, dentro do avião o ambiente é nobre e confortante.
Reza o prospecto da companhia aérea que o transporta: "Excelentes refeições quentes com os melhores vinhos do Reno e do Ródano. Generosos licores para todos os paladares. Aperte o botão, incline assento e... pronto! Chá, leite, café, sucos de frutas tropicais, almofadas, cobertores, revistas, perfumes, pasta e escova de dentes, um sofisticado serviço de bordo com o SEU uísque"."
Tudo isso somado àquele requinte extra que somente os conhecedores apreciam. Não há vibração, você está viajando a oito milhas por minuto e usufrui do conforto de sua sala de estar.
Cada detalhe foi amorosamente planejado para proporcionar o seu conforto: harmoniosa decoração, repousante iluminação fria, lâmpadas individuais para leitura, ar-condicionado para o seu bem-estar. Se quiser ouvir música, pode escolher entre Mozart e Zeca Pagodinho.
Aí o troço cai.
E de repente o pôr do sol de nada consola, honra ou eleva. As nuvens não atenuam a sua queda, o seu uísque também de nada lhe adianta, nem os vinhos das generosas vinhas do Reno ou do Ródano. No dia seguinte o seu nome estará entre os das vítimas e os seus parentes receberão um hipotético seguro e um saco de lona contendo os seus restos carbonizados.
Trata-se de mais uma das gentilezas da companhia: na realidade, dentro do saco haverá cilindros, pedaços de ferro e de estopa.
É possível que venha algum pedaço de osso de seu crânio. Ou o fêmur do seu vizinho de poltrona que estava roncando, não deixando que você dormisse.
A culpa disso tudo, segundo voz geral, é das bruxas.
Elas andam pelos espaços, montadas em suas vassouras de piaçava para derrubar os pesados boeings, os bojudos Airbus que formam turbulências indesejadas em suas outrora calmas rotas de feiticeiras brevetadas há séculos.
Buscam elas o sossego de suas estradas feitas de magia e sombra. Cada avião que invade o espaço delas é considerado um intruso que merece ser derrubado.
Contra as bruxas não há bruxaria eficaz -eis em verdade a verdade. Nem simuladores de voos nem elas, nem transponder e muito menos controle do espaço aéreo.
Mas não se assuste nem aperte o botão para fazer o avião parar: nos velhos e honestos trens havia alavancas em cada vagão que você podia puxar para que a máquina lá na frente parasse.
Nos aviões não há este recurso, eles foram feitos para voar e não para cair. Recline-se confortavelmente em sua poltrona e aproveite, centenas de olhos e mãos velam por você em terra e, no céu, satélites de última geração o protegem.
Aeromoças bem maquiadas sorriem quando você pede um copo d'água ou um café. Os comissários de bordo servem seu uísque.
Na cabine de comando, homens experimentados e sorridentes mexem em complicados painéis.
De vez em quando a voz do comandante avisa a temperatura de fora da nave e informa que a rota está segura, livre de turbulências e de maus espíritos.
Um mapa-fantasia à sua frente, dá a posição exata onde você está passando e o radar investiga com seus dedos de éter os caminhos escuros da noite que cai.
Os reatores são bons, milhares de cavalos vapor suam em suas ilhargas de ar para que você chegue rápida e seguramente ao seu destino.
Se outro avião cruzar com o seu, ele trocará as saudações de praxe pelo rádio e piscando as luzinhas.
"Ave Caesar, morituri te salutant". Ave César, os que vão morrer te saúdam. E antes de o avião despencar mesmo, não se esqueça de acender a sua luzinha individual, para que você não morra nas trevas e para que não o trague o tártaro do obscuro.
Descanse em paz: você merece.