Duas notícias foram destaque na semana passada. A primeira: o Pisa (Programme for International Students Assesment, Programa Internacional de Avaliação de Alunos), instituído pela OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), fez uma pesquisa analisando o desempenho escolar em vários países. Os resultados mostraram que, no Brasil, quase a metade (49,6%) dos 20 mil jovens avaliados tem dificuldades em ler e compreender um texto.
A outra notícia: num hospital do Rio de Janeiro, a auxiliar de enfermagem Kátia Araghaki, de 26 anos, aplicou vaselina líquida, em vez de soro fisiológico, na veia de Stephanie dos Santos Teixeira, de 12 anos, que veio a falecer. Afirmou que foi induzida ao erro porque os frascos eram iguais, e também porque não era comum haver vaselina líquida naquele setor do hospital.
Pergunta: têm algo em comum essas duas notícias, aparentemente não relacionadas?
Têm, sim. Revela-o um comentário do delegado que atendeu a ocorrência. Para ele, o maior erro de Kátia foi não ter lido o rótulo do frasco. No rótulo estava escrito que o conteúdo era vaselina. Não ter lido esse rótulo selou o destino da pequena paciente.
Os dois casos remetem à dificuldade brasileira com os textos escritos. Um problema que não vem de hoje. Durante muito tempo o Brasil foi um país de analfabetos. À época de Machado de Assis, um censo realizado na cidade do Rio de Janeiro, a então capital federal, mostrou que cerca de quatro quintos dos habitantes não sabiam ler nem escrever. O próprio Machado não frequentou escola. Menino pobre, descendente de escravos, muito cedo teve de trabalhar. Aprendeu a ler e a escrever, não se sabe exatamente como. Era uma cultura ágrafa, a brasileira, e não estamos falando apenas dos indígenas; o acesso à palavra escrita era coisa restrita a uma pequena camada de privilegiados. O hábito da leitura não se disseminou entre nossa gente, com resultados não raro deprimentes. Menino em Porto Alegre, muitas vezes fui abordado em paradas de ônibus por pessoas de idade que me pediam para ler o letreiro do veículo que se aproximava. Pode-se imaginar com que constrangimento o faziam.
Fala-se em hábito de leitura e isso realmente existe. Na verdade, é mais que um hábito, é quase uma dependência. Quem é leitor precisa ler, tem uma necessidade física disso. Seu olhar vai buscar, com insistência, um texto escrito; e, quando não há nada para ler, o resultado é uma perturbadora ansiedade, coisa que Luis Fernando Verissimo retratou numa inspirada crônica. O personagem é um homem que sabia tudo sobre vinhos. Bastava mencionar uma marca qualquer e ele dizia de que tipo de uva era feita a bebida, qual a melhor safra, qual a temperatura ideal em que deveria ser servida. Isso o tornou famoso, e um convidado habitual em programas de rádio e de tevê.
Num desses perguntaram-lhe qual era o seu vinho predileto. Eu não bebo, foi a resposta. Surpreendente: então o homem que sabia tudo sobre vinhos era abstêmio? De que jeito? Ele então revelou o seu segredo. À época da ditadura havia sido preso político. Sozinho numa cela, sofria muito, não por causa de tortura, mas porque não tinha nada para ler. Com pena dele, o carcereiro arranjou-lhe um livro que ali aparecera: um manual de vinhos. “Li esse livro tantas vezes”, concluiu o homem, “que acabei sabendo tudo sobre o tema.”
A gente lê. Automaticamente, a gente lê, mesmo que nada tenhamos a ver com o assunto. Não foi o caso da auxiliar de enfermagem; ela não leu o rótulo do segundo frasco e daí resultou um erro fatal.
Maktub é a expressão árabe para os desígnios do destino. E Maktub, muito simbolicamente, significa: estava escrito. Reflete a atitude de reverência das religiões judaica, cristã e muçulmana (os “povos do livro”, segundo os árabes) para com o texto. Não precisamos chegar a esse ponto; basta-nos entender que a leitura pavimenta o caminho para o progresso do país. E ajuda a evitar tragédias.