Há 100 anos morria Tolstói na pequena estação de Astapovo, de uma pneumonia que pegara no terceiro dia de sua fuga de casa, no frio do inverno russo e da terceira classe do trem em que viajava. Fugia no desencanto do fim de sua vida, quando abandonara todos os valores que construíram sua celebridade como escritor para fazer uma peregrinação tão intelectual como corporal, em que não sabia bem aonde queria chegar, carregando ideias de pacifismo, negação de si mesmo e uma revolta interior que o faziam voltar à sedução do anarquismo.
Quando visitei a então URSS, em 1988, quis incluir no meu programa uma visita à União de Escritores. O mundo inteiro procurava decifrar a Perestroica, a Glasnost e os rumos a que elas levariam o baluarte do mundo comunista. O seu presidente era Vladimir Karpov, considerado o maior autor de novelas históricas dos tempos modernos, com sua bagagem de personagens da história da Rússia, onde o regime se encarregava de condenar ou reabilitar os seus heróis. A sede da União era um velho palácio. Comecei a conversar com ele e logo me aventurei a perguntar-lhe como iam as relações com o regime e como a poderosa literatura russa aguentara os 70 anos de silêncio. Ele, calado, levantou-se, abriu uma gaveta de sua mesa e num gesto vigoroso me respondeu: “Mas as nossas gavetas estão cheias” – e acrescentou – “esta casa tem um símbolo, nela morou Tolstói”. Subi em sua companhia uma escada em caracol e demos num salão grande, já pintado de cinzento, com ar de abandono. Meus olhos não o olharam assim, vi o salão de luzes e brilhos, o fausto da nobreza daquele tempo e no meio do salão o conde Vronsky levando em seus braços a mais bela entre as belas, Ana Karenina. Foi aquele salão que Tolstói descreveu na cena em que sua heroína iniciava a trágica paixão que lhe motivou a vida. Ana Karenina jamais existira, mas a imponderável força da literatura foi capaz de torná-la eterna. Desci com toda a história reconstruída e foi como se tivesse conhecido naquela tarde a grande e bela mulher.
Léon Tolstói achava o Estado opressor, e suas ideias de resistência pacífica inspiraram Gandhi. Ele largou tudo para voltar à simplicidade, barba comprida e branca, roupa de camponês, botas longas e um cérebro que deu ao mundo algumas das obras fundamentais da literatura. Iasnáia Poliana, sua propriedade, onde escreveu durante seis anos Guerra e paz, é um dos centros de peregrinação literária do mundo. Todos procuram entender este homem. Morto há 100 anos, é um mito que espera ser revelado, e jamais o será. O governo russo o despreza. O Ocidente o venera e, nós, leitores, o amamos.