Nos começos de 1964, instalara-se no cenário nacional a mesma divisão esquemática que cindira a Convenção francesa, quase dois séculos antes.
Fora da dicotomia esquerda-direita -que transformava o debate político e cultural numa espécie de partida de futebol em que a maioria torce e alguns poucos jogam-, qualquer outro tipo de assunto era tido como conversa para boi dormir. Hipérbole rural, gostosamente bucólica, que caía em desuso, substituída pela divisão mais atualizada entre alienados e engajados -por sinal, outro galicismo que tardiamente se incorporava na linguagem.
Aproveitando o recesso parlamentar e criando uma pressão incontrolável sobre a sessão legislativa de 1964 que se inauguraria dias depois, foi marcado o comício-monstro para 13 de março, na praça da República, diante da Central do Brasil, no Rio de Janeiro -zona de grande concentração popular, sobretudo na hora do rush.
E no coração mesmo da Cidade-Estado da Guanabara, que tinha Carlos Lacerda como governador e prefeito "ad hoc" -por acaso ou propósito, o mais violento e letal adversário de Jango e de seu programa de reformas.
Ao lado da Central do Brasil situava-se o então Ministério da Guerra -que não era exatamente um terminal ferroviário, mas funcionava como uma central mais importante, início e fim de muitas viagens pelos acidentados trilhos institucionais.
Em Ipanema, na rua Nascimento Silva, um general quase desconhecido perdeu o sono após ouvir pelo rádio os discursos daquele comício.
Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, o General Humberto de Alencar Castelo Branco acompanhava os movimentos políticos da época, mas o fazia com a cautela que um de seus amigos, o coronel Vernon A. Walters, adido militar da Embaixada dos Estados Unidos, considerava "digna de um membro de estado-maior".
Alguns militares, mais interessados na deposição de João Goulart, achavam que tanta cautela era apenas a clássica posição de ficar em cima do muro para ver no que iam dar as coisas.
Depois de ouvir os principais discursos do comício, começou a esboçar um texto que seria transformado, a 20 de março, em "Instrução Reservada dirigida aos Exmos. Srs. Generais e demais militares do Estado-Maior do Exército e das Organizações Subordinadas".
Não era, ainda, um apelo ao rompimento definitivo das Forças Armadas com o governo. Castelo Branco gastou parte de sua noite na redação do documento, que é sucinto, bem exposto e, como diria o general Mourão Filho em seu diário, "não chovia nem molhava".
No Palácio Laranjeiras, João Goulart chegou esbodegado pelo cansaço e pelas emoções do comício. Vestiu o pijama e declarou à sua mulher: "Estou pregado!". E dormiu.
O fim de março se aproximava. A última semana do mês seria de recesso: a Páscoa cairia no dia 29.
A partir do dia 25, Quarta-feira Santa, o país na certa pararia -e a crise também. O santificado hiato faria bem a todos.
Membros do próprio governo, como Jango e Abelardo Jurema, ministro da Justiça, partiriam para descansar em fazendas de amigos. Diversos dispositivos militares estavam em alerta para desfechar um movimento. Alguns contra, outros a favor do governo. Estes, porém, limitavam-se a uma ficção na qual toda a esquerda acreditava.
De Juiz de Fora, em companhia de sua mulher, o general Olympio Mourão Filho, comandante do 4º Exército, foi visitar igrejas em Ouro Preto. O governador Magalhães Pinto, de Minas Gerais, mais esperto do que o general, costurava a conspiração golpista. Afinal, todos os dias são santos, dias do Senhor -ele não iria parar por causa de uma semana santificada ou não.
Na Barra da Tijuca, uma equipe dirigida por Glauber Rocha tomava as últimas cenas de Deus e o Diabo na Terra do Sol -mar virando sertão, sertão virando mar.
Brigitte Bardot passeava pelas praias de Búzios.
Os grupinhos de jovens, que começavam a assumir uma outra espécie de poder, ouviam o mais espantoso fenômeno musical daquela época: os Beatles, uns rapazes de Liverpool que, agrupados num conjunto de rock, cantavam "A Hard Day's Night".
Começava a noite de um dia muito difícil.
Folha de São Paulo, 6/4/2012