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Como uma língua funciona

 

Helena, que trabalha na área da Engenharia, encantada com Ciências Humanas, nos pede que comentemos como as línguas funcionam. A indagação de nossa leitora nos oferece a oportunidade de dizer algumas coisas de interesse aos demais leitores desta nossa coluna.

 

Comecemos por lembrar que nosso primeiro gramático, Fernão de Oliveira, já em 1536, afirmava que os homens fazem a língua, e não a língua os homens. Isso nos leva a concluir que uma língua é essencialmente um objeto cultural, conquista da inteligência e labor dos seres humanos. Este passo nos pennite lembrar outra lição de Oliveira, que as línguas são o que os homens fazem dela; isto significa, portanto, que as línguas acompanham os acontecimentos históricos, de glória ou de fracasso, por que passam as comunidades que as falam. A língua é patrimônio de cada indivíduo, mas também patrimônio de cada comunidade em que cada um está Inserido. Isto significa que todo Indivíduo tem limitado seu poder de criatividade; seu sucesso vai depender da aceitação do grupo a que pertence, porque a língua é também um fato social. 


O indivíduo, por maior que seja seu prestígio no grupo, não pode passara chamar 'cadeira' o objeto que todos conhecem por 'árvore'. Se a moda pega aqui ou acolá, estará logo fadada ao Insucesso. Como a sociedade, por mais uniforme e igualitária que seja. se apresenta diversificada em grupos de Indivíduos distinguidos pelo grau de Instrução, de poder, de atividade profissional, de ascensão social. Por isso uma língua está sempre passando por mudanças, quase sempre imperceptíveis, mas sempre em mudança dentro daquilo que se chama 'equilíbrio instável', porque tem de garantir um mínimo de comunicação entre os seus usuários, entre todos que integram o coletivo social.


Todas essas variedades são linguisticamente válidas: da variedade oral de um usuário analfabeto à variedade oral e escrita de um usuário escolarizado ou de um literato de renome. Karl Vossler, filólogo alemão, disse certa vez que "a mais pequena gotinha idiomática de um vendedor de milagres de praça pública é, em resumidas palavras, tão boa água de Hipocrene como o imenso oceano de um Goethe ou de um Shakespeare" (Filosofia del lénguaje). Obs.: Vale lembrar que,segundo a mitologia grega, Hipocrene é o nome de uma fonte aberta na montanha Hélicon. Grécia, por uma patada do cavalo Pégaso. Quem bebesse dessa fonte se tomaria poeta inspirado.


 Adquirir uma língua de um grupo social - na dimensão mínima que pode reduzir-se a uma família ou a uma tribo, ou que pode expandir-se na dimensão maior de um país significa efetivar um conjunto de saberes que ultrapassam os limites daquilo que costumamos chamar 'gramática'. Um excelente lingüista falecido há pouco. Eugênio Coseriu, distinguia três planos desses saberes: a) o saber elocucional. que é o saber falar, articulando física e fisiologicamente o aspecto biológico do falar, bem como, num nível superior, operar as regras elementares do pensar, para falar com congruência; b) o saber idiomático. que é conhecer um idioma particular, usando reflexivamente, Isto é, um saber fundado e fundamentado, as bases e as regras de sua estruturação e funcionamento; c) o saber expressivo, que é saber estruturar discursos, textos, para atender a situações determinadas. A suficiência manifestada no falar de acordo com esses três saberes é o que chamamos, respectivamente, normal e congruente (saber elocutivo),correto (saber idiomático) e adequado (saber expressivo).




 O maior responsável pelo insucesso ou sucesso parcial no ensino/ aprendizagem de um idioma, especificamente o que tem ocorrido com o português, é não ter sido levada em conta essa dimensão dos saberes lingüísticos que limita e circunscreve o mestre de sala de aula a um professor de 'língua', em vez de ser um professor de'linguagem'.


O Dia (RJ),19/9/2010