O jovem universitário Enio Reis, de Salvador, pede-nos que explique a razão da pronúncia da variante europeia do português, que em sua opinião é “muito má”. Tal solicitação nos oferece a oportunidade de trocar ideias sobre certas opiniões distorcidas que o falante comum tem de sua própria língua,distorções que o levam a sérios enganos.
A primeira ideia errada consiste na afirmação de que a maneira como fala é a única maneira segundo a qual todos devem falar, e está errado o que lhe for contrário ou diferente.Assim os gregos chamavam “bárbaros” aos que usavam de outro idioma que não o grego ou Latim, o estrangeiro, o que balbucia. Assim que Enio, considerando má a pronúncia da variante europeia do português, repete, dois ou mais mil anos depois, o que pensavam os gregos dos outros idiomas que ouviam. Tudo que é normal num idioma constitui sua própria norma, isto é, seu juízo de validade. Numa língua considerada em sua dimensão histórica, não há uma só norma, mas várias normas que vivem e se definem como Linguisticamente válidas.
A impressão auditiva que a variedade portuguesa causa aos ouvidos de um brasileiro, na sua rapidez e na sua riqueza consonântica, não justifica o juízo de valor que nosso baiano ou qualquer outro usuário da língua portuguesa emite. É o resultado de uma norma fonética que se foi constituindo a partir do século 16, quando começou a se desenvolver o processo de intensificação do acento dinâmico donde resultam consequências na estrutura das palavras e na colocação de pronomes pessoais e outros vocábulos átonos na frase. Vocábulos proparoxítonos passavam, na pronúncia,aparoxítonos, enquanto sofria ainda alterações o grupo de força, produzindo ao ouvinte estranho o efeito de aceleração. Deste novo movimento não participou o português trazido ao Brasil pelos colonizadores.
Fernão de Oliveira, o primeiro gramático da língua,em 1536,declara: “(...) e outras nações cortam vozes mais em seu falar, mas nós falamos com grande repouso como homens assentados; e não somente em cada voz persi (cada palavra sozinha),mas também no ajuntamento e no som da linguagem pode haver primor ou falta antre (entre) nós’ Luís de Camões, que teve o seu poema ‘Os Lusíadas’ publicado em 1572, lia os versos de maneira igual a nós hoje, ao contrário dos portugueses. Antônio Feliciano de Castilho, no século 19, lia o poema com a pronúncia de um lisboeta da época, e julgava Camões um mau poeta, porque na leitura encontrava sempre falta de sílabas métricas para chegar à leitura de decassílabos. Nos sonetos,um verso como”E se vires que pode merecer-te”, de dez sílabas para Camões e para nós, não passa de sete ou oito entre Lusitanos contemporâneos. Um professor português reclamava dos conhecimentos gramaticais dos seus alunos brasileiros, porque lhes pedia a classificação de “pelotão” e eles respondiam: “substantivo próprio”. Esquecia-se o mestre de que pronunciava”pelotão”como”p’lutão”.
Esses movimentos de mudança, como seus próprios hábitos linguísticos, são imperceptivelmente assimilados pelos falantes, ou são adesões voluntárias, quando o falante quer aproximar-se dos usos do novo grupo de que passou a fazer parte. Para exemplo do primeiro caso, Lembramos a passagem de Humberto de Campos: “Um rapaz pernambucano negava que na sua terra se trocassem essas duas consoantes(R e L). Em certa altura, um dos que afirmavam a existência (...) fez sinal aos demais para que se calassem,porque via um pemambucano que se dirigia para o grupo, e disse que o ensejo era excelente para tirar a limpo a discussão. Logo que o recém-chegado se acercou do grupo, o que propusera a prova lhe perguntou: ‘Lembraste em que rua do Recife morava Fulano?’. ‘Ora, então não sabes? Era na rua das Carçadas Artas!...”. O segundo caso sentimos na pele quando, garoto de 12 anos vindo do Recife, tivemos de acertar o passo com os hábitos fonéticos dos nossos colegas cariocas.
O Dia (RJ),12/9/2010