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Para além da paz ingênua

 

A reunião da Aliança das Civilizações, terminada no Rio, levou adiante o projeto de desmistificar os impasses de uma nova e ainda possível convivência internacional em tempos da civilização do medo e da guerra de religiões.


A iniciativa da ONU, hoje comandada pelo ex-presidente de Portugal Jorge Sampaio, conta com a participação de 109 países e quer mobilizar, ao lado dos Estados, a sociedade civil para o desbloqueio das ingenuidades e estereótipos, que deixam a busca estéril do diálogo no plano apenas das boas intenções ou de um mero voluntarismo no encontro dos corações e mentes dos povos de nosso tempo.


Há que se avançar na visão crítica do diálogo e nas enormes dificuldades em que prosperaram os idiomatismos culturais e as afirmações agressivas de uma nova identidade, em face de um Ocidente visto não só como imperial mas detentor do progresso e do monopólio da razão para levá-lo à frente. O que está em causa é o atentar-se ao limite de expropriação do dito mundo interior das demais culturas, e especialmente a islâmica, excêntricas aos focos europeus e norte-americanos, levando às hegemonias dos dois últimos séculos.


A derrubada das torres de Manhattan foi o choque ainda insuperável, visto como a desforra histórica desse inconsciente coletivo, nesse terrorismo diferente que representaria a Al Qaeda, em confrontação que apenas começa no resgate das individualidades coletivas por uma partilha diferente do futuro. A violência inaudita do 11 de Setembro envolveu, também, a assunção de uma nova guerra santa, num martírio assumido, a poder levar a um infindável conflito de testemunhos sangrentos.


Esse terrorismo emergente criou o universo do pânico a que já nos habituamos, a partir do ordálio da segurança dos aeroportos e da paralisação crescente das políticas de imigração no mundo europeu e americano.


A reunião do Rio permitiu a interlocução de estadistas como Cristina Kirchner, ou Pedro Pires, ou Evo Morales, Erdogan, Lula ou José Sócrates, ao lado de vozes expressivas dos novos movimentos de mulheres e de uma juventude consciente da ruptura de gerações que a superação do 11 de Setembro envolve para entendimento internacional.


No núcleo dessas discussões levantou-se o debate da diferença entre a luta pelo autêntico e o perigo dos fundamentalismos puristas ou das reconstruções históricas dessas identidades, como sugeririam, por exemplo, as próteses históricas, com que o chavismo propõe as Repúblicas bolivarianas. Perguntou-se, ainda, o que possa ser um verdadeiro universal de entendimentos, quando grupos radicais islâmicos continuam a considerar os direitos humanos como uma "ideologia ocidental".


Ideologia esta que levou a modernidade à secularização, quando o século 21 começa com o retorno do fundamentalismo -no que a antiga Casa Branca se considerava como a campeã do missionarismo cristão- ou com o retorno ao religioso, ou com o perigo de suas guerras, quando tantos Estados islâmicos, a partir do iraniano, voltaram, explicitamente, às teocracias. O eixo Brasil-Turquia, em torno da reivindicação de Teerã, já é de atores que invertem os termos da conquista da paz, ainda como uma herança da Guerra Fria.


É na busca da prioridade da conversa e do entendimento que se atinge o desarme, não por guerras preventivas, que levaram à mentira do perigo nuclear iraquiano e à invasão, por Bush, do Oriente Médio. Ou ao impasse de Obama de voltar para casa, já sob pena de perder a justificativa básica de sua eleição.


Folha de S. Paulo, 7/7/2010