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Adeus à carne

 

Mário Filho, que deu nome ao estádio do Maracanã, desejava escrever um romance cujo título seria 1919. Durante toda a sua vida falava deste projeto: a história do carnaval daquele ano, quando o Rio, vencida a batalha contra a gripe espanhola, que matou carioca a esmo, esbaldou-se numa folia que provocou, segundo assentamentos policiais, mais de 2.000 defloramentos.


Durante meses, o sujeito ia atravessar a rua e chegava morto à outra calçada. Os bondes viviam carregados de mortos que a saúde pública não tinha condições de enterrar. Passada a epidemia, a cidade se entregou ao carnaval mais furioso e louco de sua história. Todos queriam desforrar a tensão da tragédia. Quem escapara da gripe sentia a obrigação de desforrar, de se sacrificar a Momo, a Baco, a Vênus. Foi uma esbórnia.


Hoje, com a liberação sexual, a pílula, a emancipação da mulher, fornica-se livremente o ano todo, sem necessidade de gripe nem de carnaval. A festa virou realmente uma folia, uma brincadeira, “brincar o carnaval” significa pular, gritar, brincar realmente de folião. O erotismo ainda faz parte da festa, mas a chamada sacanagem é privilégio do ano todo. Até que se peca menos durante os três ou quatro dias de folguedos. O importante é cantar, beber, “dizer asneiras”, como naquele poema de Manuel Bandeira.


A imagem das cinzas, que a igreja pregou durante séculos, perdeu um pouco de sua eficácia. O “adeus à carne”, para os crentes, voltou mesmo à abstinência dos bifes durante a Quaresma, a carne significando a alcatra, a picanha, e não mais os pecados da carne – que praticamos o ano todo. Carnaval é brincadeira mesmo. Para fornicar temos todos os dias do ano – sem necessidade de apoio governamental e sem necessidade de atrair turistas.


Folha de S. Paulo, 18/2/2010