As afortunadas comemorações deste ano ao redor de datas significativas em louvor de tantos nomes da Academia Brasileira de Letras, nunca seriam, nunca serão, uma etapa de meras alegorias de adulações ou simples anatomia de instantes.
O calendário não refletirá apenas um ajuntamento glorioso de atos festivos. Isso diminuiria a expressão dos homenageados e a missão da Casa. Mais que isso, é uma espécie de Kairós da Academia.
Sem memória, os afetos se perdem ao deslizar entre os dedos. A memória é necessária para sentir a relevância do tempo, medir o tempo. Sem memória, o presente nos escapa, esvai-se, e simultaneamente, converte-se em passado morto.
Sem passado perde-se o sonho e o homem desabi-ta-se de pessoas e lugares. Quem perde a memória, perde a vontade. Permanece inerte, não se situa.
Bernanos disse que Deus, ao criar os escritores, já sabia as obras que deveriam produzir e as contas que lhes seriam cobradas, se negligentes, se omissos.
Joaquim Nabuco não foi cobrado. Não negligenciou, não se omitiu.
Aqui estamos para reconfirmações das suas grandes obras, ideário que se mostrou em livros, em tribunas, no comício de rua, em cátedras no estrangeiro, nas mesas de negociação internacional, no debate parlamentar, nas páginas de jornal, no instigante e revelador epistolário, na boca do povo, que o tratou por Quincas, "Quincas, o belo".
Quando nesta cidade aconteceu a III Conferência Pan-Americana os delegados estrangeiros se abismaram com a popularidade de Joaquim Nabuco. Gilberto Freyre escreveu que, a partir daí, Nabuco passou a ser visto como o grande brasileiro do seu tempo e de todos os tempos. Alceu Amoroso Lima completaria: Nabuco foi a imagem mais fulgurante do humanismo brasileiro e a mais harmoniosa da nossa história cultural.
Nas comemorações deste ano essa visão dele como modelo certamente se imporá em definitivo na cultura dita canônica, decerto ainda um tanto desatenta ao que Eduardo Portella chama "lógica exterminadora do Modernismo".
Joaquim Nabuco, como um operador da transformação social, trouxe o povo para o combate pela liberdade. Não o contentava apenas o abolicionismo como mudança, queria a verdadeira transformação. E disse: "acabar com a escravidão não nos basta; é preciso destruir a obra da escravidão" e implementar a "democratização do solo". Por tudo isto, Minha Formação é o seu melhor retrato e o seu melhor momento, inclusive como restituição do cidadão do mundo, restituição do extraviado, ao seu chão. Ele sempre disse: "Sou cativo de Pernambuco".
A Academia é em grande parte o contraste entre dois homens inseparáveis: Machado de Assis, o humilde que se fez aristocrata das letras, e Nabuco, que pertencendo à hierarquia do Império, se fez humilde, para melhor escutar os gritos de liberdade.
Atentemos para o que disse, insuspeitamente. Graça Aranha: "Na sua vida precária, sem pouso certo, sem meios, perseguida pela ironia, atacada pelo despeito, a Academia encontra a sua resistência moral em Machado de Assis e Joaquim Nabuco, o par glorioso que ela pusera à sua frente, e cuja assistência justificaria diante do público a sua aparição no caos literário".
Explica-se que a Academia registre o centenário de morte de Joaquim Nabuco com permanente curiosidade e completa empáfia, tal como fez em relação a Machado de Assis.
Promoveremos ciclo de conferências, reedições de algumas de suas obras, iremos a Londres e a Washington para comemorações especiais com a intelectualidade dessas cidades nas quais serviu como embaixador, iremos nos curvar reverentes no Recife e em Massanga-na, onde ouviremos as badaladas do sino da capela de S. Mateus, o seu "muezzin íntimo" como belamente recordou Evaldo Cabral de Mello.
Tudo isso se fará, na forma tríbia, como ensinou Agostinho de Hipona a respeito do triplo presente: o presente do passado - a memória; o presente do presente - a percepção; e o presente do futuro - a esperança.
Temos certeza, certeza acadêmica, de que os brasileiros estarão ainda mais, convencidos da sabedoria dele, recordando o que, em 1909, escreveu no Diário pessoal: "O corpo pode ser demolido, não o seja nunca o espírito". E juntos atentaremos para a lucidez de quem, há cem anos, enxergando da vida o claro/escuro e mesmo já com a voz a falhar, segredou ao médico que o atendia: "Doutor, pareço estar perdendo a consciência... Tudo, menos isso!..."
Nabuco não perdeu a consciência. Sua consciência está conosco.
Jornal do Commercio (RJ), 26/1/2010