Granada, 2 de janeiro de 2010. Primeira surpresa para um brasileiro ao tomar o café da manhã no hotel: o jornal andaluz “Ideal” traz em manchete de primeira página que a alQaeda prega mais uma vez a retomada de Al Andalus (a Andaluzia) pelos árabes. A notícia parece maluquice.
Mas vem a segunda surpresa: perto do hotel, na praça em frente à prefeitura, há uma cerimônia oficial com banda de música, militares, figuras vestidas a caráter, bandeiras, e dois grupos que se hostilizam aos gritos.
Um deles, de jovens, agita cartazes e grita palavras de ordem contra o racismo, o fascismo e a Tomada. O outro, de gente mais idosa, exibe a bandeira de Castela, defende a Espanha cristã e grita: “Maricones!” A manchete do jornal de repente faz sentido.
Naquele dia, 2 de janeiro de 2010, celebravam-se os 518 anos da tomada de Granada pelos reis de Aragão e Castela, Fernando e Isabel. Tratavase do último baluarte mouro na Península Ibérica, que caía depois de 781 anos de ocupação. A cerimônia celebrava a data, sem deixar de exibir um figurante do próprio Boabdil, o último sultão de Granada, que entregou as chaves da cidade.
Quase oito séculos passados e ainda se briga nas ruas pela data! Este é um dos segredos da Espanha: país de história riquíssima que é atualizada como memória viva. A memória mais forte na Espanha, sem dúvida, é a da Guerra Civil (1936-1939), que ainda divide a população. Mas as disputas por autonomias regionais, por línguas, por separação, pela monarquia e pela república, e a cerimônia do dia 2 mostram que o fenômeno é mais profundo. O passado não é revivido como lembrança, ele é atualizado no processo de memorialização. No episódio de Granada, a defesa da Tomada é fundida e atualizada em posições de cunho conservador, de defesa do catolicismo, da monarquia, da Espanha unida. O combate à celebração da data se confunde com a luta contra o etnocentrismo, contra o fascismo franquista, contra a monarquia, contra o centralismo. Indo mais fundo, a Reconquista tem dividido intelectuais espanhóis como Unamuno, Ortega y Gasset, García Lorca em torno da definição da própria identidade do país: europeu e cristão ou africano, miscigenado, transcultural.
Pode-se perguntar se essa constante atualização da história é bênção ou maldição. Não seria melhor ter um país como o nosso, em que algumas décadas passadas já viram história morta? Pode até ser maldição, mas é sem dúvida uma maldição fascinante.
O Globo, 9/1/2010