Participei com a doutora Zilda Arns Neumann, que era médica, em atividades da área de saúde pública; mais recentemente, integramos, junto com os doutores Adib Jatene, Cesar Victora e Paulo Buss, entre outros, a Comissão Nacional dos Determinantes Sociais em Saúde, que elaborou um diagnóstico sobre a situação de saúde do Brasil. Formada em Medicina, a catarinense Zilda Arns trabalhou como pediatra e sanitarista. Não era, no entanto, o caráter técnico de sua atividade que impressionava, e fascinava, os que a conheciam. Era, sim, a extrema generosidade que demonstrou na coordenação da Pastoral da Criança, órgão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (a propósito, era irmã de dom Paulo Evaristo Arns, cardeal arcebispo emérito de São Paulo). Mais de 150 mil voluntários colaboraram com a Pastoral em 30 mil comunidades paupérrimas. Por seu trabalho, Zilda Arns foi indicada, durante três anos seguidos, ao Prêmio Nobel da Paz. Ela representava, melhor do que ninguém, aquilo que, desde tempos remotos, tem sido um característico essencial da atividade médica: a compaixão, o desejo de ajudar os outros. A medicina é hoje uma profissão em grande parte regida pela tecnologia, o que é compreensível, pois as novas tecnologias, aplicadas ao diagnóstico e ao tratamento, salvam vidas sem conta. Mas, ao fim e ao cabo, a prática médica, aí incluída a prática de saúde pública, expressa-se numa relação entre seres humanos, e a compaixão (que não significa ter pena, mas sim refere-se àquela empatia essencial para compreender o sofrimento alheio) é aí um elemento essencial. Foi a compaixão que levou a doutora Zilda ao Haiti, onde veio a falecer.
E é significativo que isso tenha ocorrido num país paupérrimo, em cuja história um outro médico desempenhou um papel importante, e sombrio. Estamos falando de François Duvalier, mais conhecido como Papa Doc. Este apelido refere-se ao aspecto paternal que envolvia seu trabalho médico, e que o levou a vencer as eleições presidenciais em 1957. A partir daí – e este é um dos efeitos perversos do poder – mudou por completo: instaurou um governo baseado no terror promovido pelos tontons macoutes (“bichos-papões”) e na exploração do vudu, prática mística comum no Haiti. Mais que isso, intitulava-se um deus, e provavelmente acreditava nisso. Quando morreu, o Haiti era o país mais pobre das Américas e um dos mais pobres e atrasados do mundo.
O Haiti visto por Papa Doc era diferente do Haiti visto por Zilda Arns. E essas distintas visões de alguma maneira refletem o conflito básico em nosso mundo.
Zero Hora (RS), 14/1/2010