Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Recordando e vivendo num boteco do Leblon

Recordando e vivendo num boteco do Leblon

 

– Esse clima de festa de fim de ano não te deixa meio deprê, não? Acho que mais triste que eu só o peru do Natal.


– Ah, nem me fale, cara, cada ano fica pior. Eu hoje quase nem venho aqui, só vim mesmo porque a Leninha faz questão que eu passe a tarde de sábado no boteco.


– É, você já me contou. Pelo menos isso, companheiro, poucos podem se orgulhar de que a mulher é que insiste que ele vá para o boteco. E depois tu diz que a Leninha não te compreende.


– Continuo dizendo. Ela me bota pra fora para eu não atrapalhar o carteado dela, pergunte a ela. Mas hoje quase que eu fico em casa mesmo assim. Eu me trancava no quarto, botava uma ampola de uísque e um balde de gelo perto da cabeceira da cama, ligava a televisão num canal com filme de bicho e ia esquecer tudo, inclusive o carteado, por mim ela podia perder até a casa de Búzios, não estou ligando pra mais nada, essa é que é a verdade.


– Pera aí, também não é assim. Está certo que no fim do ano se cria essa atmosfera meio melancólica, mas tem o outro lado. Mais um Natal na companhia da família, mais um ano se iniciando...


– Menos um ano, você quer dizer.


– Como assim? Não entendi.


– Tu ainda conta um ano a mais no réveillon? Mas é claro que não é um ano a mais, é um a menos, pode ir tirando no calendário da tua vida: menos um, cada dia está mais perto a passagem pela catraca. Você só tem menos dois anos que eu, também pegou latim no ginásio. Eu fui aluno do velho Messias, que era um terror, mas sabia ensinar e até hoje eu sei uns troços em latim. Tu sabe aqueles relojões antigos, de corda e pêndulo? Eles costumavam ter no mostrador uma frase em latim que o velho Messias repetia e a gente não ligava, mas hoje eu ligo muito, todo dia eu me lembro dessa frase.


– Tempus fugit, eu me lembro.


– Não, essa aí é mole, isso qualquer um diz. A que o velho Messias ensinou não se refere ao tempo, se refere às horas, a cada hora. Diz assim: Omnes feriunt, ultima necat. Sacou? Claro que não sacou, tu não foi aluno do velho Messias. Quer dizer: “Todas ferem, a última mata.” Tu conhece coisa mais terrível? Todas as horas ferem e a última mata, é isso mesmo. Cada horinha que passa é menos uma hora. Menos uma hora, menos uma hora...


– Isola, cara, e tu ainda fica olhando o relógio enquanto fala?


– É, a gente pode se enganar como quiser, mas da verdade ninguém escapa. E nem que eu quisesse escapar, não podia, tudo conspira em contrário, inclusive esse final de ano.


– É, mas por causa da tua interpretação, com essa ideia do menos um.


– Não tem nada de interpretação, é a realidade sem filtro. Esse ano eu fui pela primeira vez à reunião que minha turma de faculdade faz de cinco em cinco anos. Era de dez em dez, mas me disse o Gominhos, que é quem organiza tudo, que de dez em dez dava tempo demais para morrer uma porção, menos griloso é de cinco em cinco. Bem, eu nunca fui a nenhuma, mas este ano, 45 anos de formado, a Leninha também quis ir e aí eu fui. Triste decisão, devia ter continuado sem ir.


– Eu sei como são essas coisas, a gente chega lá e não se lembra nem do nome da maioria.


– Não, comigo não teve esse problema, eu não esqueço o nome de ninguém, lembrei todos, falei com todos. E o problema não era o nome, isso não seria problema, mesmo se eu esquecesse. Mas tu te lembra da Marcinha?


– Eu me lembro, o pessoal dizia que ela não tinha calcinha, tinha porta-joias. Ipanema inteira vivia aos pés dela, claro que eu me lembro. Deve estar meio velhusca, ainda é bonita?


– Um pouco menos que a Brigitte Bardot depois de velha, tu já viu a Brigitte depois de velha? Pois a Marcinha conseguiu embuxar mais que a Brigitte, a cara dela parece um pergaminho de banheiro do Tutancamon. Uma coisa tristíssima, tudo despencado, eu quase não conseguia olhar.


– É, tem gente que cai muito com a idade.


– Tem gente, não, todo mundo. Daquelas gatas de nosso tempo, não tem uma que não perca para uma ameixa seca em matéria de aparência, parece praga.


– É, mas elas devem estar dizendo o mesmo de você. Eu também conheci você na juventude com o apelido de Meio Quilo e hoje você tem meio quilo por centímetro cúbico de barriga.


– Olha quem fala! Quem tem mais pelanca no pescoço de toda a turma de nossa faixa aqui é você, parece até aquelas golas roulées de antigamente. E tua barriga já está dando a segunda volta por cima do umbigo, não vem botar banca em cima de mim, não.


– Tudo bem, mas isso só confirma que a gente nota a decadência dos outros e não vê a nossa, a gente tem de se enxergar.


– E por que é que você pensa que eu quase não desci hoje? Eu fiquei me olhando nos espelhos. Na suíte lá de casa, os armários embutidos têm espelho nas portas, a porta do banheiro tem espelho, só não tem espelho no teto. Aí eu estava de cueca, me olhando assim e a Leninha sentada na cama e aí eu me avaliei, aquelas pernas finas e sem cabelo, aquela careca, aquela bunda chocha... aí eu falei: “Leninha, vocês mulheres comem qualquer coisa.”


– Graças a Deus, bebamos a isso. Como é mesmo a frase latina?


O Globo, 3/1/2010