Faz tempo: tinha as manhãs livres, alma e corpo também livres. Conhecia um atalho que subia para o morro onde havia paisagem e solidão. Uma antiga estrada de saibro, toda arrebentada, parecia-me impossível para carro. Ia a pé, então, saboreando os passos e o sol que descia sobre meus ombros e me abençoava.
Fui lá diversas vezes. Geralmente, ia de mãos abanando, apenas pelo prazer de andar, ter o sol e a manhã. Raramente levava um livro. De qualquer forma, sempre sabia que ia para um lugar onde podia ficar sozinho e tranqüilo, pensar em coisas que aqui embaixo já ia perdendo o hábito de pensar.
Encostava a cabeça num pé de quaresmeira, que, em determinadas épocas do ano, em fevereiro, sobretudo, ficava todo roxo. Deixava o maço de cigarros ao lado e consumia minha manhã e minha liberdade procurando ressuscitar um trecho de minha vida, uma etapa de minha caminhada. Na realidade, nada ia procurar, deixando que a liberdade e a manhã me levassem a um roteiro que escolhia na hora, sem saber onde iria dar, nem mesmo se me daria em algum lugar.
Destacava um ano: 1943, por exemplo.
E começava por janeiro: Itaipava, passeios a cavalo, padre Castro Pinto lendo os telegramas que falavam da guerra, o tombo do Macário, a noite em que fiquei preso na despensa - a chave quebrara na fechadura e tive de dormir em cima dos
sacos de farinha, só no dia seguinte vieram me buscar.
— Isso não foi em 1943. Foi em 42. Talvez em 44. lãlvez no ano passado, em Maríenbad.
Pois, em manhã assim, ouvi de repente um ruído: o carro subia, gemendo, a velha estrada. Logo vi, coberto pelas moitas do capim mais alto, a capota do carro fazendo a curva e, logo depois, os gordos pneus, maltratados pelas pedras e pelo calor que o carro me trouxe subitamente, quando estacou a minha frente.
— Desculpe, não viemos incomodar ninguém.
A frase era ociosa, mas o homem que saiu do volante julgou-se obrigado a dizer qualquer coisa. Eu poderia dizer coisa parecida, "também não quero incomodar ninguém", mas preferi ficar quieto e aguardar os acontecimentos, que logo começaram a acontecer.
O homem do volante deu a volta por trás do carro e abriu a outra porta. Do ângulo que estava, deitado quase no chão, não via quem vinha ali. E vi primeiro uma perna gordinha e queimada de praia. Depois, um joelho adolescente, e logo uma saia azul-marinho.
Não olhei mais nada. Vi depois o vulto da colegial sumindo pelo início da mata, os cabelos louros batendo nos ombros, a blusinha justa falando de uma seiva que eu sentia sem precisar olhar para a sua juventude.
Sei lá quanto tempo demoraram. Pensei no ano de 1943, pulei para o de 1952, recitei mentalmente todos
os poemas de Verlaine que sabia de cor, bolei a história para um conto encomendado por uma editora e já estava disposto a vir embora quando o casal ressurgiu das matas.
Olhei bem a cara do homem. Era mais velho que eu, tinha uns 40 anos, ou mais. Aliança no dedo e anel de advogado ou de contador. Não olhei a cara da moça nem a blusa, para não ver as iniciais do colégio.
Novamente a saia azul-marinho, o joelho adolescente, a perna gordinha, o barulho da porta fechando, o ronco do motor, a capota sumindo pelas moitas de capim.
Estava só, novamente. Nada parecia ter acontecido ali. À minha frente, nada indicava ter um carro parado ali, o homem com anel no dedo, o joelho adolescente e forte, a saia azul-marinho de um colégio ignorado. Nem mesmo a marca dos pneus ficara no saibro castigado pelo peso do automóvel. Nenhum vestígio na manhã de sol.
Então vim embora, sentindo na garganta uma coisa amarga que me faz ainda ter vergonha de mim mesmo e, ao mesmo tempo, sentir uma impotente inveja das coisas que podem acontecer com os outros, tornando-me cúmplice e vítima de um mundo que eu não condeno, apesar de não amá-lo.
Folha de S. Paulo, 2/10/2009