“A defesa do cigarro passou a se apoiar numa suposta liberdade que tem o fumante de fazer o que bem entende, mesmo que isso o prejudique. Um argumento ultrafrágil, que não resiste a qualquer exame racional”
Enquetes, entrevistas, cartas aos jornais comprovam-no: é impressionante o apoio à recente lei que proibiu o fumo em locais fechados em SP, e que certamente será seguida por leis similares em todo o Brasil. O país, e o mundo em geral, estão rejeitando o tabagismo.
O que representa uma reversão de expectativas numa já longa história, que coincide com o período hoje por nós conhecido como a modernidade. O início deste período foi marcado por vários acontecimentos importantes, entre eles a descoberta da América. E, da América, vieram muitos produtos para o Velho Mundo: a batata, o milho, o tomate e o fumo. Cujo uso, entre os índios, era específico e ligado a rituais, a práticas curativas. Eram as folhas da planta que eram queimadas e aquilo não gerava nenhuma situação que pudesse ser rotulada como dependência.
Levado para a Europa, o fumo foi recebido de maneira ambivalente. Em muitos países foi proibido; na Turquia, cortava-se o nariz dos fumantes. Aos poucos, porém, as resistências foram sendo vencidas, mesmo porque havia a ideia de que a substância poderia ter efeitos medicinais.
Mesmo assim, o uso continuava restrito. Duas medidas mudaram drasticamente essa situação. A primeira foi a industrialização, que tornou o uso de cigarros, sobretudo, uma coisa fácil e prática; ao mesmo tempo, as substâncias que, no tabaco, causam dependência, tiveram sua concentração fortemente aumentada.
O consumo do fumo também foi enormemente estimulado pela publicidade. Um exemplo muito típico, e sempre citado nos estudos a respeito, é o do charuto. Nos Estados Unidos, no começo do século 20, charuto era considerado coisa de gângster. A indústria decidiu mudar essa visão negativa, e o fez de várias maneiras. Em primeiro lugar, tratou de interferir junto aos jornais, que frequentemente publicavam fotos de gangsters fumando para evitar que isso acontecesse e que,ao contrário, aparecessem fotos de pessoas importantes — artistas, intelectuais, empresários — com charutos. O auge ocorreu quando a atriz Ingrid Bergman, no auge de sua carreira, elogiou homens que fumavam charutos. A partir daí charuto tornou-se coisa fina. Aliás, o fumo no cinema é, ainda hoje, uma constante. Hollywood ajudou muito a propagação do hábito, como também os anúncios em geral.
Nem todos aceitavam o tabagismo como coisa inocente, sobretudo entre os médicos. Um decisivo marco a respeito foi um estudo feito em médicos ingleses, e publicado em 1951 pelos pesquisadores Richard Doll e Austin Bradford Hill, demonstrando que o risco de câncer de pulmão era muito maior entre os fumantes. A partir daí muitos agravos à saúde — neoplasias, doenças cardiovasculares, problemas para o feto — foram sendo acrescentadas à lista, isso sem falar nos riscos para os chamados fumantes passivos. No começo, a indústria tentou negar esses problemas, mas as evidências eram fortes demais. A defesa do cigarro então passou a se apoiar numa suposta liberdade que tem o fumante de fazer o que bem entende, mesmo que isso o prejudique. Um argumento ultrafrágil, que não resiste a qualquer exame racional. Em primeiro lugar: que grau de liberdade pode ter uma pessoa cujo organismo está submetido a uma violenta dependência química? Depois, todos sabemos que a liberdade de uma pessoa termina onde começa a liberdade das outras pessoas. Todos temos direito a um ambiente não poluído pelo cigarro e, no caso das crianças, esse direito é ainda mais dramático. Finalmente, é preciso lembrar que as doenças geradas pelo tabaco serão uma sobrecarga para os sistemas de saúde, tanto o público como o privado. Ou seja: todos acabam pagando os custos do tabagismo.
Essas constatações não significam que se deva hostilizar os fumantes, mesmo porque em sua esmagadora maioria eles são a favor da lei e deixariam de fumar se pudessem. Mas seria um erro muito grande se os fumantes transformassem o cigarro numa causa. Um erro histórico: como as epidemias, às quais aliás pertence, o tabagismo chegou a seu auge e agora entrou numa fase decrescente. Num futuro não muito remoto, o fumo será apenas uma lembrança. Triste e estranha lembrança.
Correio Braziliense, 25/8/2009