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Filho leitor

 

Marcantonio, por esses dias, estaria a completar quarenta e sete anos. Nesta saudade que queima os pais em espécie de fogo lento, que dói sem cessar nas labaredas erguidas como soldados impiedosos, do que me lembrei?


Não foi do promotor cultural no domínio das artes plásticas e sim do modesto e iniciante leitor consciente. Descobriu a mãe que ele, bem garoto, lia escondido como se quisesse evitar semelhança aos hábitos do pai. Fechava-se numa água furtada, parte da biblioteca de nossa casa no bairro tão recifense do Encanta-Moça e lia, e lia, e lia.


Huxley ensinou que a cultura não deriva da leitura de livro, senão da leitura exaustiva e intensa de bons livros. Aproveitei-me disso para lhe sugerir certas obras de consagrados autores. Acatou meus palpites mas, bem depois, era ele quem me indicava jovens escritores, nomes então ainda não canônicos. Bernardo Carvalho, por exemplo.


Quando a mãe fez a descoberta daquele leitor quase clandestino lembrei a ele que o fato só fazia nos alegrar. Não havia razão para se sentir violado nas suas conveniências. Expliquei quem era Proust para, em seguida, revelar-lhe que o grande mestre, em menino, costumava ler sentado no sanitário da casa dos avós, a olhar também pela janela para o campanário da aldeia. Brinquei a lhe dizer que sua opção fora semelhante pois do seu refúgio poderia sempre ver as casuarinas da praça ao lado. A mesma praça que agora tem o seu nome.


Na leitura Marcantonio encontrou a liberdade, porque o livro é a liberdade. Dele guardamos sempre essa marca de que viveu e de como viveu. Sem espartilhos no sonho ou no fazer, no conviver e no dizer. Por isso, fala-se dele com respeito e alguma devoção. E há os que não falam, uns por inveja, outros por incomodados com o seu julgamento antecipado sobre certos conjuntos de obra que não resistiram ao tempo, engessados na mesmice que não cria, ficam só recriando o criado.


No mês passado, mais uma vez em visita ao Museu de Arte Contemporânea, de Barcelona, ouvi de novo os seus dirigentes falarem do meu filho. Ouvi tudo e lhes disse que o Evangelho ensinava aos pais como reagir, já que nas Escrituras está dito que ninguém é profeta em sua terra. Fora da terra dele há mais louvores e mais saudades.


É assim mesmo. Lembro sempre o que li em Guimarães Rosa: "A morte é o sobrevir de Deus eternamente."


Então, temos é que unir os dois extremos da vida, pois Deus é o Princípio de tudo. Não chorar o filho morto na data do seu nascimento, mas festejar o tempo em que esteve conosco, como quer Maria do Carmo.


Digo estas coisas todas um tanto da boca para fora, porque me descubro lendo e relendo Ignacio Sánchez Mejias, já que o mundo ruiu sobre nós exatamente numa hora cinco da tarde. Eis os versos:


"Às cinco horas da tarde. / Eram cinco da tarde em ponto./ Um menino trouxe o branco lençol/ às cinco horas da tarde./ Uma esporta de cal já prevenida/ Às cinco horas da tarde. / O mais era morte e somente morte. Às cinco horas da tarde."


Jornal do Commercio (PE), 28/8/2009