RESPOSTA DO SR. ROQUETTE-PINTO
SR. AFONSO de Taunay:
Traduz uma injustiça, que fazeis a vós mesmo, o impulso que vos leva à possibilidade de integrar a Academia uma função de zero ao infinito. O posto em que ora vos achais de direito era vosso, porque estas cadeiras não nos pertencem, para os regalos da afeição ou do interesse. Dando-vos as boas-vindas, em nome da Academia, confesso a minha surpresa de não vos haver encontrado entre os meus ilustres eleitores, já figurando, naquele tempo, ao lado dos que servem aqui à cultura do país.
Não vos atormente, pois, o receio de que o voto de 7 de novembro haja tentado inovar a poltrona que a modéstia vos sugeriu. Sendo a tradição lembrança acumulada na alma coletiva, não me parece a velhice indispensável ao seu condicionamento, embora lhe dê, é certo, mais peso e maior prestígio. A correspondência de Machado de Assis com Joaquim Nabuco, publicada recentemente em nossa Revista, define um caminho que antes afasta a Academia dos outeiros inocentes do tempo de D. João V, jogos florais sem conseqüências. “Você sabe, escrevia Nabuco a Machado, a 6 de dezembro de 1901, você sabe que eu penso dever a Academia ter uma esfera mais lata do que a literatura exclusivamente literária”... E a 8 de outubro de 1904: “A minha teoria já lhe disse, devemos fazer entrar para a Academia as superioridades do país.” Machado respondia concordando. No vosso caso, Sr. Afonso de Taunay, foi o que fizemos...
Quando considero o vulto e a importância da vossa obra magnífica, bem compreendo que houvésseis tardado. O peso da bagagem, como no verso de Musset, demorava o passo do caminheiro firme, vaqueano de todos os chãos percorridos em labor inigualável. Mas o que impressiona sobremaneira, na vossa personalidade, é o traço de humanismo que reponta sempre na frase despretensiosa e erudita.
Diplomado pela Escola Politécnica do Rio, professor da de São Paulo, levastes para os trabalhos históricos, dominantes no vosso tesouro, o espírito educado na ciência experimental, que ensina a julgar, com imparcialidade, homens e acontecimentos.
No exame do que o vosso olhar descobre e analisa há muito do engenheiro avaliando resistência de materiais... Os vossos juízos críticos, tantas vezes restaurando reputações de antigos vultos, como no caso de D. Francisco de Sousa, revelam o profundo conhecedor da balança, arma dos químicos e símbolo dos magistrados. Na direção do Museu Paulista pudestes aplicar de maneira feliz as condições pessoais acima apontadas. Devendo ser os museus a miniatura da pátria, – na terra e nos seres vivos – cumulastes as preocupações cívicas daquele posto eminente, em que também estais no vosso lugar. Compreendestes muito bem que o do Ipiranga é, antes de mais, um Museu Paulista. Pedir a cada um dos Estados um Museu sem a preocupação regionalista – é absurdo. Mas, com essa restrição, é apontar uma grande obra realizável e urgente, quando muitos aspectos da nossa terra vão sumindo. E ainda que seja um grande bem substituir o carro de bois, sobrevivência hindustânica, pelo automóvel ou pelo avião, o jequitibá pelo eucalipto, há grandes lucros espirituais na conservação de amostras dos seres que, compondo o ambiente em que surgia a nação, fizeram a riqueza dos avós.
Velando pelo progresso contínuo das vossas coleções zoológicas, mantendo com brilho a Revista do Museu Paulista, pensastes em tudo. Ao lado do Palácio do Ipiranga, fizestes erguer veneráveis engenhocas, desconjuntadas e gemedoras, que no interior, durante séculos, transformavam os produtos da terra em utilidades mais gerais. E apoiado pelo espírito superior de Alarico Silveira, fundastes os Anais do vosso grande e prestigioso instituto.
Nas canseiras e responsabilidades da administração jamais se esgota a vossa atividade, que anualmente nos entrega artigos, monografias e volumes mais de uma vez laureados pela Academia.
Tão grande é a vossa bibliografia! No entanto a lista dos vossos trabalhos não traz referência às músicas que tendes composto, improvisações no teclado de que sois senhor e amigo.
É que um dos segredos da vossa obra fecunda está na constante aplicação. Pois não é certo que realizais todas as manhãs o vosso momento musical, dedilhando Schumann, Chopin, Sílvio Dinarte ou Flávio Elísio – tendo na estante, diante dos olhos, no lugar da pauta, um jornal diário a cuja leitura procedeis, enquanto a melodia se desprende das vossas mãos fidalgas?
Meio excelente de ler os diários, amainando, ao compasso da música, os arrepios que poderia provocar o noticiário. Quem não for capaz de reconhecer, no teclado, os bemóis e os sustenidos, ainda assim poderá seguir o vosso método, visto que hoje a boa música é uma questão de mecânica...
Como romancista compusestes a Crônica do Tempo dos Filipes, que li, até o fim, na segunda edição, crismado Leonor de Ávila – já sem demasias, vivo, interessante, cheio de páginas soberbas.
Nele figurais lutas de portugueses e batavos, ambiente de uma leve intriga de amor, e mostrais que o episódio fundamental, na conquista holandesa, não foi econômico. Antes religioso. Um traço da Reforma, gizado no ultramar.
No domínio da lexicologia brasileira vossa contribuição tem sido, sem nenhum exagero, formidável. Em 1924 publicastes o Vocabulário de Omissões – coletânea de palavras correntes no Brasil, e em Portugal não registradas no mais conhecido dos modernos dicionários. Era o volume desdobramento de trabalhos anteriores, visto que desde 1909 havíeis começado a tarefa vultosa e útil que em 1914 tomou corpo no Léxico de Lacunas, completado em 1927 com a Coletânea de Falhas.
Para nós outros brasilianos, Sr. Afonso de Taunay, a vossa atividade, nesse capítulo lexicológico, teve duplo valor. Primeiro porque, graças aos vossos estudos e observações, fizestes entrar no rol oficial dos vocábulos milhares de termos que o nosso povo, na sua incontestável soberania, criou ou alterou. E, depois, pela coragem, atenciosa mas enérgica e decidida, com que respondestes à descabida pretensão de quem “não podia admitir sugestões brasileiras em matérias de vocabulário português”. A invasão ultramarina doía aos nervos peninsulares. Vossa argumentação foi irrespondível: a linguagem de trinta milhões de brasileiros há de forçosamente contar maior opulência verbal do que a de seis milhões de portugueses, tanto mais quanto fortes contingentes vindos da Itália, da Espanha, da Alemanha, dos próprios indígenas e dos africanos, entraram a desfigurar o clássico idioma.
Ensinais que os ingleses dispõem de 500.000 vocábulos; 300.000 têm às suas ordens os alemães, e quase outro tanto os franceses. Os portugueses dispõem de uns 140.000... E, são palavras vossas, “das quantas línguas civilizadas é a portuguesa das mais pobres, quanto às tecnologias, ninguém o ignora. No entanto relutam em aceitar os milheiros de termos que lhes oferecemos.”
Como recusar italianismos ou germanismos da língua falada no Brasil?
Segundo a vossa estimativa há mais de cem mil palavras brasilianas à espera do registro nos grandes léxicos.
Mas na admirável monografia não só consignais os termos brasílicos refugados pelos dicionários portugueses. Traçais um esboço curiosíssimo da distribuição geográfica de certos vocábulos, ensinando-nos que para eles há fronteiras definidas, como é, por exemplo o rio São Francisco.
O Brasil inteiro está convosco. Não pode ser bom livro para nós o dicionário que não consigna vocábulos que a nossa vida de família exige a cada hora.
Quanto à terminologia científica, provastes que os dicionários são simplesmente inqualificáveis, omissos ou, o que é pior, errados.
A língua não é um fim; é simplesmente um meio. Veste a idéia. É certo que muitos preferem a luva à mão; nós ambos, Sr. Taunay, preferimos que se tire a luva e se nos entreguem os dedos.
Digna de toda veneração é a filologia que conhece as coisas correspondentes aos nomes; essa, porém, em geral mostra-se muito modesta nas suas imposições e ousadias; e não comete erros como os que nos apontastes, em 1926, no opúsculo dos Reparos.
Quem pode ler, sem sorrir, o caso da abelha melípona que os cuiabanos chamam guaxupé, e o dicionário define como sendo uma espécie de penteado?...
Iguais à inqualificável leviandade, consignastes inúmeras. Então, o carrapato é um crustáceo! Mamíferos como o boto, passam a peixes... A intransigência com que nos querem ditar o vocabulário pessoas que só conhecem um terço, talvez, das palavras correntes no Brasil, porque o resto é constituído por expressões nascidas na terra americana, reponta igualmente no caso da ortografia.
Se todos concordam em que a única razão de ser da escrita é a representação dos sons da língua, tal qual se fala, o vocabulário não deve ser prejudicado pela sua tradução gráfica. Fora disso “C’est comme si l’on croyait que, pour connaître quelqu’un, il vaut mieux regarder sa photographie que son visage”, na frase cortante de Ferdinand de Saussure.
Se a lição do grande mestre de Genebra exprime a verdade, quando a pronúncia é diferente não há razão nenhuma para que a escrita seja a mesma. Felizmente estamos caminhando para a estenografia universal e para o fonograma. No futuro darão golpes no espaço os partidários das letras simples ou dobradas, os paladinos do s.
A máquina de escrever matou os arabescos pretensiosos e torturantes da caligrafia; a ortografia há de ser desmontada pelo fonograma. Nos milagres da válvula termoiônica e da célula fotoelétrica, hoje, arquivam-se os sons, em uma longa fita, à medida que os vocábulos são pronunciados. Quem não desejaria os versos do nosso Alberto de Oliveira vivos na sua expressão, em vez de mumificados na mortalha de um livro impresso?
A tipografia, assistindo ao desdobrar do progresso, que tudo vem transformando ao redor dela mas respeitando-a, no que possui, de essencial, há de ser mero auxiliar. Certos livros, em futuro que me agrada imaginar bem próximo, serão pequenos films enrolados. Volumes manuseados pelos nossos descendentes hão de ser parecidos com os papiros dos antepassados; mas, em vez de guardar a imagem gráfica dos romances ou dos versos, conservarão as composições estuantes, na própria voz dos poetas.
Apaixonado estudioso da fala do vosso povo, pertenceis à corrente que nos parece em condições de engrandecer este país. Continuais, hoje, no mesmo caminho que vos levou outrora a guardar, como relíquia, um pedaço da corda em que desceu ao escuro da sepultura o corpo de Floriano Peixoto, gesto ardente da mocidade, cheio de simbolismo.
Não é, pois, de surpreender que a vossa obra capital tenha sido a História das Bandeiras, “história da conquista do Brasil pelos brasileiros...” na vossa linda frase.
Entre os discípulos queridos do nosso inolvidável Capistrano de Abreu, ao lado de Basílio de Magalhães, Calógeras, Washington Luís, Alfredo Élis, Alcântara Machado, Paulo Prado, Studart, Borges de Barros e outros notáveis conhecedores do formidável episódio bandeirante, tendes, Sr. Afonso de Taunay, autoridade singular.
Nos seis alentados volumes publicados cuidastes principalmente de compendiar o que se apurou, até agora, de rigorosamente exato, quanto à grande epopéia da raça.
A vossa exigência, o vosso apurado senso crítico, a vossa imparcialidade deram à obra decisiva um tom de segurança, raramente igualado, embora, ao que nos avisais, a síntese da história das Bandeiras não deva ser tentada por enquanto. “Episódio culminante dos anais brasileiros”, escrevestes, pois a ele deve o país dois terços do seu território atual, foi no entanto o bandeirismo até quase os dias modernos tratado com grande descaso.”
Com grande descaso!
Todos os nomes que há pouco recordei, até mesmo o do mestre maior, pertencem a publicistas de hoje. No Instituto Histórico, a que damos o melhor da nossa veneração, o “episódio culminante” até 1889 quase não teve eco.
Na lista das questões propostas aos velhos estudiosos, havia de tudo... menos teses a respeito das bandeiras.
Costumo dizer, Sr. Afonso de Taunay, que da comparação dos fatos antigos com os recentes tiro forças para sustentar o meu incorrigível mas consciente e equilibrado otimismo. Consenti, pois, repita convosco, nesta altura, que a história das bandeiras – o maior feito da vida nacional – é uma página escrita pelas gerações republicanas. O próprio Varnhagen, é vossa a observação, não lhe concedeu lugar à altura do seu relevo.
Com quanta saudade nos lembramos de Capistrano de Abreu, o decisivo iniciador da página soberba, apenas esboçada por Southey!
Como não recordar, neste momento, que a figura culminante de Antônio Raposo foi uma ressurreição do nosso tempo devida aos estudos de Washington Luís? E Antônio Raposo – na vossa opinião – foi o maior dos bandeirantes, porque ampliou o nosso território.
Se a História das Bandeiras é copiosa consolidação dos documentos existentes, por outro lado acha-se referta de dados descobertos pelas vossas pesquisas infatigáveis; e, em pontos sem conta, corrige inúmeros erros, até os menos importantes, como os que transviaram José de Alencar, em Minas de Prata.
Mau gosto, imperdoável numa hora destas, seria o meu, se me propusesse enumerar todos os méritos daquela vossa obra monumental. A História Geral das Bandeiras, perpetuando o vosso nome deu-vos a imortalidade, única, suprema, desinteressada recompensa digna de um trabalhador da vossa estirpe.
Não desejo esconder, porém, meu nobre amigo, que me afasto do vosso ponto de vista há pouco recordado. Muito mais do que o “recuo do meridiano” – o que me interessa, no formidável episódio, misto de grandeza e humildade, tecido sanguinolento de glórias e opróbrios, não é o território – é a raça. Mais de uma vez tenho perguntado a mim mesmo, perplexo ao ver escritores brasilianos de talento e cultura repetir balofas necedades e respeito dos irremediáveis desastres sociais que seriam os povos mestiços, tenho perguntado a mim mesmo: como é possível crer mais nos livros falsos do que na própria natureza?
Sejam quais forem as tristezas que o espetáculo da vida nacional, em qualquer tempo, haja de suscitar em nossa alma, o Brasil é uma realidade; desmente as teorias...
Para São Paulo, escrevestes, não imigrou nenhuma grande figura da nobreza de Portugal e de Espanha. E ainda mesmo que muitas imigrassem... e fossem louras, digo eu.
A combatividade e a mobilidade – que considerais os dois característicos mais salientes do ânimo sertanista, são essencialmente ameríndias. Também não são louros os “hércules-quasímodos” que ocuparam a Amazônia, renovando aos nossos olhos, em outros termos, porque os tempos são outros, a epopéia dos paulistas. Nem dólico-louros são os que varam as canoas no Cuminá, vivos nas páginas de Gastão Cruls, pelejando a luta infernal que o film documenta. Não há retórica que destrua a verdade; nem livro que desminta a vida.
Não sei, Sr. Afonso de Taunay, se fostes sempre bem inspirado consagrando no primeiro volume da vossa História, um capítulo ao que chamastes arianização progressiva dos paulistas, porquanto a antropologia ensina que o sangue ariano é uma utopia.
Em todo caso afirmais muito bem: “é com elementos quase unanimemente euro-americanos que efetua sua obra a raça de gigantes de Saint-Hilaire.”
Relendo-vos, deparou-se-me um episódio quase desprezado na história das bandeiras, caso aparentemente irrelevante mas que, entretanto, tem, a meus olhos, grande importância porque traz à tona um fator espiritual de primeira ordem, por si só capaz de explicar muitos aspectos do grande movimento mameluco.
É o caso que “em agosto de 1671 chegava à Bahia grande número de paulistas, ao mando de Estêvão Ribeiro Baião Parente e Braz Rodrigues de Arzão, gente solicitada pela Câmara do Salvador para combater os Aimorés de Paraguaçu”. “A conquista, diz Jaboatão, só teria o melhor efeito se fosse executada por paulistas, gente que se criava neste exercício...”
Assim foi. Terminadas as campanhas vitoriosas das expedições, ficaram na Bahia uns tantos paulistas que se puseram a assolar o distrito de Porto Seguro.
A D. Pedro II escrevia a respeito o governador-geral, Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho, em 1692, narrando as providências tomadas contra “uns quarenta paulistas que na vila de Porto Seguro, havia três anos, se haviam levantado de maneira que a governavam como sua, mandando matar a quem queriam, confiscando bens, fazendo outros insultos inauditos”.
Com todo o segredo, adiantava o governador, fizera embarcar em uma sumaca cinqüenta soldados, dois ajudantes e dois sargentos, à ordem do desembargador Dionísio de Ávila Vareiro.
O desembargador facilmente liquidou o caso: “prendeu a todos dentro da mata, com admiração dos que conheciam os paulistas embrenhados”. Uma testemunha acrescenta: “pareceu coisa milagrosa este sucesso.”
Na sua simplicidade, o episódio destaca o imponderável elemento espiritual da resistência dos bandeirantes, a disciplina, enquanto organizados sob o mando do cabo da tropa. Bastou que ela afrouxasse para que os valentes de Baião e Braz Rodrigues, no reduto que havia três anos dominavam, fossem aprisionados, sem demora, ainda mesmo embrenhados nas matas que conheciam como ninguém, e onde os soldados reinóis mal caminhavam.
Aliás, Sr. Afonso de Taunay, frisais muito bem a existência dessa disciplina, que para mim foi, talvez, a maior força dos paulistas. Os testamentos bandeirantes e tantos outros dados, consignados no livro admirável de Alcântara Machado, depõem no mesmo sentido.
E de onde provinha o regímen, fator tão decisivo? É só recordar que as bandeiras surgiram no arraial fundado pelos mais disciplinados de todos os religiosos. No influxo jesuíta dos primeiros tempos julgo encontrar, com toda isenção de ânimo, a maior parte dos elementos espirituais que fortaleceram, em normas severas, o ânimo dos bandeirantes e a decisão dos sertanistas. Mais tarde, os jesuítas sofriam dos seus discípulos... É da vida!
Nas “reduções” do Sul a influência dos Padres foi além do necessário ao condicionamento das conquistas. Dominadora. Chegou mesmo a transformar os caçadores guaranis em agricultores submissos. Por outro lado, ali, o meio espiritual indígena foi desde logo profundamente alterado. O catecismo sufocou, de início, as crenças antigas, desmoralizando velhas lendas e incentivos. Finalmente entre aqueles guaranis faltou o aventureiro ibero ou mameluco, elemento de mestiçagem e de inquietação, que os padres faziam todo o possível para afastar da “república”.
Eu não compreendo que se procure explicação para o estupendo movimento nas doutrinas velhuscas da antropologia literária. Cartesiano que me confesso, encontro, no entanto, fatores psicológicos, muito mais decisivos do que aqueles motivos mecânicos e problemáticos.
Os homens que para São Paulo vieram de Portugal, portadores ou não de cromossomas nórdicos, pertenciam ao mesmo grupo dos que foram para a Índia, para a China e para a África. Por que razão o ânimo conquistador de tais supostos netos dinamizados de árdegos Vikings, não criou bandeiras semelhantes às de Antônio Raposo, em Guiné ou em Macau? E, ainda mais. Eu não acredito que tenha sido apenas a ambição da riqueza o móvel daqueles homens.
Em muitos, se não em todos, influiu o ambiente ameríndio criador e propagador de lendas capazes de animar o desejo de varar o desconhecido em busca da terra sem males. Em São Paulo, naquele tempo, a própria língua era a dos índios. Deles recebiam os jovens, nas histórias do berço ou nas da puerícia, a infiltração da curiosidade, vício ou virtude que fez cair Eva no Paraíso e salva, hoje, a humanidade nos laboratórios da ciência.
O bandeirismo, como varação de território e preação de índios, é anterior à chegada dos colonizadores. Prática habitual dos Tupis. Com eles aprenderam os Iberos; e, mais bem dotados de recursos e de cultura, desenvolveram a lição...
Da própria Piratininga, a respeito dos índios, muito antes das bandeiras, escrevia Anchieta; “muchas vezes van a la guerra y auiendo andado mas de cien leguas, si captiuan tres o cuatro se tornan con ellos...”
Das formidáveis caminhadas indígenas há estudos modernos interessantíssimos e documentados. Para o Maranhão sabemos que partiram do Sul grandes bandeiras tupis muito depois de 1500. Claude d’Abbeville, em 1612, conheceu índios que haviam testemunhado a chegada da primeira migração, no fim do século XVI. Mais duas arrancadas semelhantes foram verificadas depois.
A primeira foi defensiva; foi conquistadora, a segunda. A terceira foi antes religiosa.
O grande móvel desta última, escrevi eu mesmo algures, foi a esperança de encontrar, um belo dia, a terra sem males – onde os frutos continuamente amadurecem e por si mesmos enchem os samburás, onde a caça nunca falta e vem, sozinha, oferecer as carnes ao caçador. Entre os Tembés dos nossos dias, ainda existe o mito do país maravilhoso. Maíra – criador do Mundo – vive em Ikauéra, terra situada ao ocidente do Pindaré e do Gurupi, a um mês de viagem da última aldeia. A casa de Maíra é grande e cercada de flores. Ao redor, as plantas úteis crescem espontâneas; ninguém as cultiva nem trabalha para colher o que produzem. As aves nidificam no solo; ninguém precisa trepar às árvores para furtar os ovos. As abelhas encharcam de mel o chão em que abrem colméias. Os companheiros de Maíra deixam-se viver docemente... o seu trabalho é dançar e cantar. Na terra de Ikauéra ninguém morre; só se chora de alegria. Ali, a gente envelhece para poder sentir as glórias do rejuvenescimento, que vem coroar sempre a idade avançada daqueles homens felizes...
Eis aí, mais ou menos, o que as índias contavam aos rapazes de Piratininga, infiltrando-lhes no pensamento o gérmen da curiosidade, que achou ótimo terreno no substrato sonhador da alma ibérica. Porque, essa lenda não é recente. Prova-o o episódio, quase incrível, narrado por Gandavo, no qual, por volta de 1539, algumas centenas de tupis da costa, ao mando de Uira-uaçú – (a Harpia), – tendo ao lado dois portugueses que morreram no caminho, partiram na direção do Noroeste, em busca de “terras novas onde acharão imortalidade” – diz o cronista. Uira-uaçú e alguns companheiros subiram o Amazonas e chegaram ao Peru, onde foram aprisionados pelo Vice-Rei, em 1549, segundo a crônica de Jiménez de la Espada. Compreendereis agora porque, Sr. Afonso de Taunay, vejo nesse glorioso Gavião de Penacho – o bandeirante desconhecido, que está faltando à vossa galeria do Ipiranga; e no ambiente criado pelos Tupis de Piratininga, encontro o condicionamento primordial e ordinário das bandeiras, ambiente que pôde agir mais decisivo, graças ao isolamento do núcleo de povoadores, separados da costa pela muralha da serra, e entregues à direção dos Inacianos, disciplinadores sem rival.
O mesmo imponderável elemento espiritual, até certo ponto comparável ao impulso que desencadeou as bandeiras místicas da Idade Média, na Europa, representa para mim mais do que o índio, mais do que o ouro e mais do que as pedras, a causa oculta e subconsciente do assombroso movimento.
Paulo Prado, à luz de um notável documento que fez copiar no Arquivo da Marinha de Lisboa, carta de Fernão Dias, dirigida a Bernardo Vieira Ravasco, escrita numa sexta-feira, 20 de julho de 1674, véspera da partida para a viagem de Minas – afirma, com toda a justiça: “O velho paulista não era o sonhador de riquezas fabulosas, o ‘caçador de esmeraldas’ que a lenda criou: vemo-lo frio organizador de uma empresa difícil, a que o animavam a lealdade e a devoção ao seu rei.” Eu também penso assim.
Não era o baixo apetite que impelia o ancião, riquíssimo e prestigioso, no seu “lento caminhar”. Sonhava com as pedras verdes – por cumprir a ordem do soberano, que era encontrá-las naquelas rechãs.
E tanto o rei conhecia a dedicação de Fernão Dias Paes Leme que, em data de 12 de novembro de 1678, embora sabendo o sertanista embrenhado a centenas de léguas de São Paulo, escreveu-lhe do próprio punho, pedindo que fosse auxiliar D. Manuel Lobo a fundar a Colônia do Sacramento, no Rio da Prata! Caçador de esmeraldas? Ou escravo magnífico da sua lealdade? Soberano cumpridor do seu dever?
Por outro lado, lendo o que se diz dos paulistas daquele tempo, gente de turbulência sem igual, ferozes e intratáveis, mal se compreende como podiam os grandes cabos das tropas realizar os prodígios conhecidos.
Luiz César de Menezes, governador do Rio de Janeiro, mandava dizer a D. Pedro II (1691): – “Os moradores de São Paulo vivem como quase à lei da natureza e não guardam mais ordens que aquela que convém a sua conveniência...” Era voz geral!
Pelo sabido a respeito de algumas bandeiras, e particularmente pelo caso do enforcamento de José Paes, ordenado por Fernão Dias, no Sumidouro, como castigo de grave felonia, já se poderia suspeitar que os sanguinários heróis paulistas não podiam viver assim à lei da natureza...
A publicação das Atas e do Registro Geral da Câmara de São Paulo, das Sesmarias, Inventários e Testamentos, cerca de 80 grandes volumes, hoje entregues aos estudiosos graças a Washington Luís, veio esclarecer muitos pontos da vida dos bandeirantes. Os vossos livros, entre os quais não quero esquecer a notável História da Cidade de São Paulo, os de Élis, o de Alcântara Machado, os de Paulo Prado – bastam como informantes de quem queira fazer juízo acerca do meio social em que se criavam os heróis sangrentos e cúpidos.
Não há mais que citar uns três ou quatro episódios, como o de 1623 quando a Câmara resolveu a deportação dos Omens de roim boqua que deffamavam os homens honrados. A 10 de janeiro de 1632 obrigava os vadios que não tinham oficio a tomarem amo ou despejarem a terra. No mesmo ano, D. Benta Dias era obrigada a mandar colocar uma porta na sua casa de morada, que ela desejava aberta à tout venant... Certo Custódio de Souza Tavares em 1639, curandeiro de larga freguesia, era forçado a deixar a clínica, por não ter carta de esaminação.
Tudo isso são provas de policiamento social incompatíveis com a fama geral dos paulistas. Há, porém, um documento que fala por si mesmo, visto que nele se requinta uma preocupação que já vai desaparecendo nas cidades modernas: a 10 de janeiro de 1632, Sebastião de Paiva levou à Câmara o eco de alguns murmúrios públicos. Diziam que havendo, no meio da igreja, um banco, dele tomavam conta, durante as cerimônias, Suas Mercês os oficiais, “com grande prejuízo e escândalo do povo por se tratarem mal as mulheres” – obrigadas a se sentar no chão.
Que fizeram os membros do Governo Municipal daquela vila, povoada por demônios? Não podendo atender a todas as senhoras... mandaram retirar o banco, privando-se de tal conforto, em gesto de cavalheiro.
Sanguinários, sim; mas honrados e organizadores. E, na guerra... como na guerra.
Uma república de salteadores não seria capaz de construir a obra durável da nossa formação territorial.
Encontro ainda uma confirmação do que penso a respeito da influência moral já citada, na transcrição que fazem das seguintes linhas, em que Pedro Taques, retratando o criminoso, explica o célebre crime de Alberto Pires: “nele não lavrou o buril da discrição de seus pais com a polícia em que criaram seus filhos, civilizando-os com a doutrina das escolas dos pátios dos jesuítas do Colégio de São Paulo.”
O impulso do século XVII foi decisivo.
Vejo, em admirável continuidade histórica, o drama do descobrimento até hoje prosseguido; a sementeira das povoações ganhando sempre, cada vez mais, os recessos distantes; os trilhos e os caminhos cada vez mais emaranhados, enlaçando novas regiões.
“Caçadores de petróleo” exploram hoje a terra e levantam o curso dos rios; sertanistas, que têm o ímpeto e a resistência de Antônio Raposo, desafiam a mata e as cachoeiras para “descer” as peças que num sonho luminoso querem proteger e civilizar.
Nos momentos tristes de dúvida, costumo retemperar a minha alma desdobrando lado a lado os mapas seculares do Brasil. Tenho então diante dos olhos verdadeiros cortes antropogeográficos no tempo e no espaço. E como quem se compraz em comparar as fotografias da criatura amada, nas diferentes idades por que ela passou, acompanhando o surto das linhas que transformam o rosto impessoal no vulto gentil da mulher que vive e faz viver, ou morrer, leio nessas figuras a ascensão que os indiferentes não descobrem.
Pelo que aí fica, Sr. Afonso de Taunay, podeis ver que, se não estou sempre de perfeito acordo convosco, sou sempre um vosso humilde leitor maravilhado pelo carinho e pela consciência, com que tomais parte no grande e nobre movimento intelectual que é, na República, a história dos brasileiros que conquistaram o Brasil.
* * *
A existência de Luís Murat – cuja figura evocastes há pouco nos seus versos inflamados, foi uma rajada de entusiasmo e de paixão; a vossa tem sido uma doce harmonia, cheia do altruísmo resumido no verso de Lucano:
Non sibi, sed toti genitum se credere mundo.
Não vos acreditais nascido senão para o que é útil aos vossos semelhantes.
Na decoração do Palácio do Ipiranga, onde desdobrastes os requintes da vossa alma, entre painéis e estátuas magníficas, há lindos motivos humildes e comoventes: ânforas cheias d’água dos grandes rios que arrastaram os heróis para o desconhecido, no caminho da conquista integral do nosso berço.
A pátria é como a água dos rios – sempre nova e sempre a mesma.
Assim também tem sido a vossa digna atividade.
Há, por tudo isso, uma grande figura antiga que revive nesta hora e neste recinto...
Seja abençoado pelo seu povo, Sr. Afonso de Taunay, todo aquele que aumenta, pelo esforço honesto, a glória dos antepassados.