O dinheiro do prêmio
Não é para me promover, não só porque não faço isso, como porque a notícia já é velha e saiu em tudo quanto é canto. É porque preciso lembrar que ganhei o prêmio Camões para o que vou contar possa ser bem compreendido.
Não é para me promover, não só porque não faço isso, como porque a notícia já é velha e saiu em tudo quanto é canto. É porque preciso lembrar que ganhei o prêmio Camões para o que vou contar possa ser bem compreendido.
Já tentei formular várias teorias sobre o incitante assunto de que tratarão hoje estas linhas, mas nenhuma delas é satisfatória. Tanto assim que desisti. Além disso, teorizar, pensando bem, é apenas a expressão da ansiedade humana de que a vida faça algum sentido apreensível por nós. Daí o pouco sucesso, creio eu, dos romances sem "enredo". A trama, sabem os romancistas e os bons leitores, precisa ser bem mais verossímil que a chamada vida real, que sempre foi muitíssimo mais inacreditável que os piores delírios dos ficcionistas. A trama, o enredo, ajuda tanto o autor quanto o leitor a fingir, para não ficar meio ou completamente lelé, que existe alguma lógica nos acontecimentos, ao alcance de nossa percepção. Claro que não existe, mas a gente precisa tão desesperadamente dela que procura enredos em romances, filmes, peças e histórias em geral. Teorizar, enfim, acaba não adiantando nada, não explicando coisa nenhuma e gerando discussões desagradáveis depois do almoço.
A frase “os números não mentem” nunca deixou de ser verdadeira. Contudo, os números só existem na cabeça do homem, e o homem mente. Ou seja, é fato que os números não mentem, mas há grande fartura de gente que os emprega para mentir. E os números costumam intimidar quem os escuta, principalmente aqueles, que imagino maioria, em que a matemática ressuscita o terror experimentado nos bancos escolares. A precisão do número é mortal e dá sempre a impressão de que quem os utiliza, numa argumentação qualquer, tem razão. Isso cria situações curiosas, porque, em certos casos, quanto mais “preciso” o número, mais suspeito ele é. Estatísticas como “37,23 por cento das crianças de tal cidade consideram a freqüência à escola uma perda de tempo” se originam de dados que não podem ser apresentados dessa forma, principalmente porque há neles uma margem de erro que varia de caso a caso. Desconfiar, pois, de números tão certinhos assim.
Assevera antiga máxima que “um pai sustenta dez filhos, mas dez filhos não sustentam um pai”, sábio enunciado, cujo acerto vemos o tempo todo e que os velhinhos dos asilos confirmarão fartamente. Cobertos de razão estão os coroas que ouvem felizes tudo o que lhes dizem na churrascaria, no dia dos pais ou das mães, mas mantêm um ceticismo sadio e tratam de juntar os rendimentos que podem, que é para depois não serem provas vivas dessa máxima. Como hoje, ao que parece, amanheci mais recheado de provérbios do que Sancho Pança, acrescento que seguro morreu de velho e não de maus-tratos na Casa de Amparo aos Velhinhos Esperando-Ela.
No domingo passado, citei aqui a frase de meu amigo e conterrâneo Zecamunista que hoje uso como título.
Se novamente não me atraiçoa a cada vez mais rateante memória, creio que foi o senador Cristovam Buarque quem disse que o Congresso está correndo o risco de se tornar irrelevante. Que é que está nos dizendo, Excelência, mais alguma outra novidade para contar? Aos olhos dos governados, o Congresso já não tem a menor importância, a não ser pelo vasto, mas pequeno em relação à população em geral, contingente que se beneficia, direta ou indiretamente, das esculhambações, roubalheiras, falcatruas, impropriedades e até – sei lá – de uma surubinha ou outra nos feriados, com um dos surubantes portando a chave de um excelente cômodo, de outra forma sem nenhuma serventia. Na internet apareceram umas coisas, não sei se verdadeiras.
Meu primeiro emprego foi em redação de jornal e, no dia-a-dia da imprensa, já fui desde repórter (esforçado, mas ruim) a chefe de redação (não tão esforçado, nem tão bom). Bom mesmo, ou pelo menos mediano, acho que só como copidesque, no legendário tempo dos copidesques e seus desafios himalaicos, tais como botar em meia lauda o essencial de uma conferência de duas horas – não tenho muita saudade. E editorialista, creio que razoável. Mas o pouco brilho de minha carreira não impediu que tenha vivido praticamente todo tipo de situação por que pode passar a imprensa em geral e um seu órgão em particular. Ou seja, assim ou assado, manjo jornal, o mundo jornalístico e seus valores, conheço suas boas qualidades e seus defeitos e acompanho a imprensa brasileira há mais de meio século.
Devo esclarecer que também não conhecia a palavra “coincho” ou, se a conhecia, tinha esquecido. Fui espiar “vozes de animais” no Houaiss e peguei-a lá. Refere-se ao som emitido pelo – como direi? – aparelho fonador do porco. Para nós, humanos, o coincho tem uma capacidade de comunicação muito limitada, mas vai ver que isso não passa de antropocentrismo preconceituoso e a porcalidade terá, quem sabe, até mesmo seus oradores. A esta altura grandemente ofendidos com a nova nódoa sobre sua imagem, que, por obra de lamentáveis e injustos mal-entendidos, nunca foi das melhores, haverão de estar coinchando protestos revoltados, em pocilgas pelo mundo afora. Os porcos, milenarmente transformados em pernis, presuntos e linguiças, devem achar é pouco essa gripe aí, como resposta aos muitos gravames que lhes infligimos. Mas não serão escutados, porquanto – reza um dos ditados em que acho que estou ficando viciado –, se o lobo compreendesse o cordeiro, morreria de fome. Pois é, não entendemos coinchos e não queremos entender. E assistimos impassíveis até a genocídios suínos, como acaba de acontecer num país cujo nome agora esqueci, onde, ao que parece, não sobrou viva nem a Petúnia do Gaguinho. É assim a ingrata existência, não se pode fazer nada.
Como sabemos, existem muitas frases comumente repetidas a cujo uso nos acostumamos tanto que nem observamos nelas patentes absurdos ou disparates. Das mais escutadas nos noticiários, nos últimos dias, têm sido ´não há razão para pânico´ e ´não há motivo para pânico´, ambas aludindo à famosa gripe suína de que tanto se fala. Todo mundo as ouve e creio que a maioria concorda sem pensar e sem notar que que se trata de assertivas tão asnáticas quanto, por exemplo, a antiga exigência de que o postulante a certos benefícios públicos estivesse ´vivo e sadio´, como se um defunto pudesse estar sadio. Ou a que apareceu num comercial da Petrobras em homenagem aos seus trabalhadores, que não sei se ainda está sendo veiculado. Nele, os trabalhadores ´encaram de frente´ grandes desafios, como se alguém pudesse encarar alguma coisa senão de frente mesmo, a não ser que o cruel destino lhe haja posto a cara no traseiro.
A gente tem a impressão de que o governo já entrou em campanha eleitoral faz algum tempo, mas ele nega, de forma que deve ser mentira, porque o governo não mente aos cidadãos. Contudo, assim ou assado, mentira ou não, o assunto tem sido bastante discutido, geralmente levando ao debate sobre o terceiro mandato do presidente Lula, que ele, com o ar docemente constrangido e aparentando, não sei se intencionalmente, uma convicção bem menos incisiva que em relação a quase tudo mais, diz que não quer. Na quase impossível hipótese de ele me dizer isso pessoalmente, eu fingiria acreditar por uma questão de educação e respeito ao cargo dele. Mas claro que, como venho dizendo há bastante tempo, não boto fé nessa negativa – para mim está feericamente estampada no semblante dele a vontade de ficar até quando Deus permitir. Acho que nunca vi alguém tão feliz da vida quanto ele, subindo e descendo em aviões e entrando e saindo de castelos e palácios, claro que ele está num barato permanente.
Sou do tempo em que se falava na “imprensa escrita, falada e televisionada” e, para ser sincero, implico com a palavra “mídia”, embora saiba que não adianta. Mas é que essa palavra entrou em meu vocabulário através do inglês, onde ela ainda é como em latim: singular “medium”, plural “media”. Entre nós, ganhou um i acentuado e virou coletivo. Não tenho nenhum argumento realmente defensável contra esse fato, é a velha rabugice mesmo, acho que com a idade ela vai piorando. Mas deve haver algum dispositivo no Estatuto do Idoso que me dê direito a isto, de forma que apenas aviso que, quando escrevo sobre imprensa, penso na escrita, na falada e na televisionada.
Pelo meu gosto, sinceramente, preferia escrever sobre os novos bem-te-vis que têm aparecido aqui no terraço, a visita fugaz do gavião Herculano ou o capenguinha do calçadão, onde nunca mais apareci, fugindo da humilhação impiedosa que ele me infligia. Então por que não escreve? – perguntariam os leitores que também não aguentam mais ler a respeito de como os nossos governantes se desmandam a torto e a direito e como o nosso dinheiro é tungado alegremente pelos que deviam cuidar dele. Bem, é uma espécie de fraqueza, acho eu. Quando escrevo sobre bem-te-vis ou sobre o calçadão, fico uma semana sem poder sair nem para ir à padaria, conforme meu costume de provedor esforçado. Sou interpelado ainda pertinho de casa.