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Xexéo para presidente

 

Há muito tempo que eu não ia ao Festival de Cinema de Brasília, do qual participara da criação, ainda no início dos anos 1960, com Nelson Pereira dos Santos e Paulo Emílio Salles Gomes fazendo dele catapulta para o lançamento nacional do Cinema Novo. Quando Marcus Ligocki Jr. me convidou para presidir o Júri do 52º Festival, em novembro de 2019, recebi a notícia como um convite ao reencontro, ao cultivo de um cinema tão perseguido. Uma volta à festa.

A formação do Júri era excelente. Nela, se destacava Artur Xexéo, velho amigo que via de tempos em tempos. Caí em seus braços, passamos os primeiros dias, entre uma reunião e outra do júri, conversando sobre o estado geral do cinema brasileiro. Foi Xexéo que lembrou a famosa e decisiva frase de Paulo Emílio: “O pior filme brasileiro é sempre melhor para se pensar o Brasil do que o melhor filme estrangeiro”.

A projeção dos filmes em concurso já havia se encerrado quando literalmente caí da escada. Uma escada no hall imponente de nosso hotel, comprida e em caracol, com um primeiro lance que terminava em espaço mais ou menos largo. Foi ali que fui parar e, por milagre, não senti dor alguma. Mas quando deixei a ridícula posição de vítima encaracolada, já havia uma pequena multidão em volta de mim a sugerir razões e consequências. Xexéo, que estava no hall no momento da queda, era um dos que haviam se apressado a me socorrer e não saiu mais de perto de mim, até o fim de meu atendimento.

Os gentis responsáveis pelo festival me levaram a um socorro urgente. A meu lado, Xexéo tentava evitar o excesso de cuidados, embora procurasse cuidar para que não me abandonassem. Tentei liberá-lo do incômodo, mas ele achou que alguém precisava ficar ali, a vigiar o que me acontecia. Meu amigo encontrou uma cadeira de costas largas, a colocou diante de minha cama e passamos o resto da tarde a conversar fiado sobre filmes e jornais. Os assuntos que nos interessavam.

Desembocávamos sempre em política, um assunto que não era visivelmente o preferido de Xexéo. Ele fazia restrições aos políticos que desejavam “ressignificar” as coisas mais simples, como a fome, cultivando modernidade para fugir de suas responsabilidades. Acho que, no fundo, ele preferia os políticos antigos, mais objetivos e menos intérpretes da realidade, como Leonel Brizola ou Carlos Lacerda. Gente que a população, à esquerda ou à direita, entendia sem precisar de esforço universitário. Com sua voz rasgada, como quem está sempre resfriado e se esforça para impô-la, Xexéo construía o ser militante contemporâneo, político capaz de pensar o mundo e o país onde vive de um modo menos “ilustrado”.

De repente, na cama de hospital, me ocorreu uma iluminação. Eu estava diante de um futuro presidente do Brasil, que não necessitava de muita conversa fiada para se impor. Xexéo riu-se de mim, mudou de assunto e não falamos mais de política. Cada vez que eu tentava voltar a ela, ele puxava um assunto mais atraente, como o musical que prometera escrever para mim.

No Rio, ainda trocamos algumas mensagens eletrônicas, mas não nos falamos mais. Quando, domingo passado, soube do que acontecera com Xexéo, tomei sua morte por um recado. Está na hora de elegermos um cara como ele para a presidência do país. Alguém comum, inteligente e bom caráter que, sabendo de nossas tantas necessidades, queira e nos ajude a sair dessa. Pode ser um influenciador vigoroso como Felipe Neto, uma juíza corajosa como Rosa Weber, um mestre de todos nós como Zuenir Ventura, um político clássico como Tasso Jereissati ou um político novo como Flavio Dino, um herói brasileiro moderno como Eduardo Leite, o governador gay que não é um gay governador. E outros, todos sem ódios em sua formação.

O Globo, 04/07/2021