A reiterada postura do presidente Bolsonaro detestar os limites de seu poder, e não gostar do que viu, deu ao ex-presidente Lula uma vantagem que não teria contra um candidato com história ligada às tradições políticas liberais a defender. A frente ampla em defesa da democracia que se formou em torno de Lula não abriu mão de suas críticas quanto à corrupção nos governos petistas, nem esqueceu o descalabro econômico iniciado em seu segundo mandato e concluído com o desastroso governo de Dilma Rousseff.
Os sinais de alerta voltaram a se acender com a divulgação da Carta em que esboça alguns pontos de uma política econômica que ameaça repetir erros que deveriam ter ficado no passado, diante do fracasso da adoção de medidas populistas e baseadas no Estado como indutor da economia. O ato falho de Lula no debate da Globo na sexta-feira, desdenhando os empregos gerados pelos MEI (microempreendedores individuais), figura trabalhista paradoxalmente criada em seu governo para desburocratizar as relações de trabalho, explicita que ele ainda não superou uma visão sindicalista antiquada diante das mudanças trazidas pelo anseio individual de progresso independente.
Não tivesse como adversário um político reacionário e regressivo como Jair Bolsonaro, ligado a tudo quanto existe de atividades não compatíveis com o país moderno e civilizado com que sonhamos, talvez o PT não obtivesse o sucesso que, segundo as principais pesquisas, obterá neste domingo nas urnas.
Ainda é uma incógnita sua relação acrítica com governos ditatoriais de esquerda, repetidas vezes reafirmada durante esta campanha. Embora Lula tenha dado mostras pessoais de respeitar a democracia e as regras do jogo, seu partido continua com setores fortemente ligados a uma visão radical da política de esquerda, que aliás reclamaram da postura mais ao centro que o ex-presidente imprimiu à sua campanha.
Mas, ainda assim, há uma diferença crucial entre o PT do ex-presidente e o governo de Bolsonaro. O controle do PT está nas mãos de Lula, um político de imagem moderada que, não fosse por sua capacidade de negociação com diferentes tendências políticas, não conseguiria reunir em torno de si um grupo tão heterogêneo de economistas, empresários, políticos. Fosse outro o candidato, não há indicação de que o PT conseguiria superar o bolsonarismo, haja vista o que aconteceu em 2018 com Fernando Haddad.
Bolsonaro não tem partido, nem conseguiu formar o seu, mais por descaso -não dá importância a eles, tratando-os como meras barrigas de aluguel -do que por incompetência. Mas o radicalismo de extrema direita parte dele, e os que o seguem têm que, se não concordarem, no mínimo aceitar seus arroubos autoritários. Muitos, no decorrer desse mandato, converteram-se em seguidores atrabiliários, comungando com os excessos do chefe para manterem seus cargos, ou porque deixaram que seus mais baixos
instintos aflorassem. O fato é que os ataques às instituições democráticas, e à própria forma de governo que impõe limites ao presidente através de outros Poderes da República, fizeram de Bolsonaro uma ameaça permanente, além de criar um ambiente de intranquilidade no país que não pode terminar em boa coisa. Vencedor, Lula terá que governar com uma equipe muito além do PT, o que não quer dizer que não haverá embates ideológicos num eventual governo petista.
Mas a história de Lula dá mais garantias da prevalência de bom senso no futuro que a de Bolsonaro, marcada por permanente tensão entre sua visão personalista e as instituições a que pertenceu, inclusive o Exército, do qual usou e abusou durante os últimos anos. Em vez de servir como ponte para o retorno dos militares ao poder político pela porta da frente, Bolsonaro colocou ainda mais obstáculos a uma instituição que já tinha recuperado sua credibilidade diante da sociedade.
Assim como, se reeleito, Bolsonaro não tem autorização das urnas para prosseguir na sua sanha destruidora das instituições democráticas, Lula também não pode sentir-se inocentado pelas mesmas urnas. O que aconteceu nesta eleição é que a sociedade viu-se constrangida a escolher entre a democracia e a incivilidade, entre a democracia e a barbárie. O apoio à democracia inclui, muito principalmente, a rejeição ao abuso político e econômico para governar, assim como à corrupção para conseguir apoios legislativos.
O presidente que tenta a reeleição e o ex-presidente que aspira voltar ao poder têm altas taxas de rejeição popular justamente por esses pecados institucionais. Hoje iremos às urnas diante de um desafio estranhamente anacrônico: votar a favor da democracia, um valor que está garantido desde a Constituição de 1988 e que, recentemente, voltou a ser ameaçado.
Hoje iremos às urnas diante de um desafio estranhamente anacrônico: votar a favor da democracia.