Lula começa a sair da onda de desencanto dos 500 dias. Marta emparelha com Serra no tira-teima que parece que serviu como decisivo para o plebiscito antecipado do governo, e agora chega o número chave para vencer-se as areias movediças da estabilidade econômico-financeira assentada na jugular do mítico superávit primário. Teríamos saído da dita inserção passiva na globalização nesses atuais 2 bilhões de saldo nas transações correntes, o maior resultado já ocorrido desde 47, quando começam os dados do IBGE. O sucesso estrondoso do setor de exportações nos empresta um saldo comercial de 24% este ano, quando o comércio mundial cresceu 2,5%. E não é bolha, como insinuou o ex-ministro Sayad, mas resultado para ficar, num impulso ao resto do país que aumenta as vendas internas.
''Xô, urucubaca!'', pode repetir Lula, no bom praguejar contra o país da esperteza e do derrotismo de plantão, quando esses índices não refletem ainda o empenho direto da ação social que mal saiu ainda dos orçamentos de 2004. Não gastamos ainda senão 10% dos programas corretores dos desequilíbrios sociais, ficando o dispêndio com o primeiro emprego, por exemplo, em apenas 0,2 sobre o previsto, e o da reforma agrária em apenas 8,6% da sua dotação. Quarenta por cento dos 300 programas prioritários não despenderam sequer 10% das suas presentes dotações.
Esses primeiros números se assentam em dados que começam a desmontar a sutileza dos incréus. Caiu o desemprego por todo este semestre; subiram em 3% as carteiras assinadas, o trabalho informal expandiu-se em 8%, e a renda média chegou a 886, o melhor número desde agosto do ano passado. O azar que se arreda corre agora com a chance desses números recapturarem a confiança nacional castigada como sempre no período madrasto de um meio de governo. O capital único de Lula esteve, até agora, no extraordinário apoio do país de fundo, hipotecado e re-hipotecado à margem dos resultados objetivos que alimentassem a avalanche da opção por Lula em outubro de 2002. Conservou, contra ventos e marés, esses 52%, contra todos os prognósticos. E até onde os novos números de sucesso vão evitar o que há um mês ainda se temia como um plebiscito nas urnas municipais, transposto numa bofetada no Planalto. Viveríamos a maldição dessas assintonias, em que a notícia tardia da recuperação - e para valer - não desmonta um contágio com a perda de fé no governo da transformação social? O capital de fundo continua aí, entretanto.
As grandes sindicais absorveram a dureza do novo salário mínimo compatível com a recuperação econômica; as greves mantiveram-se no estrito setor do serviço público e a coordenação do MST renova o crédito ao Planalto. E mesmo fora das garantias do salário mínimo 500 mil novos trabalhadores chegaram ao mercado, não obstante estejam recebendo tão só 77% daquela quantia, mas a já mostrar o nível bruto irredutível de uma nova redistribuição da renda nacional.
O dado primeiro da consolidação do governo não se restringe aos sucessos da estabilização econômica, da tranqüilidade da banca financeira e da deliberada decisão presidencial de não abrir ainda as comportas dos juros altos, vistos como a garantia da passagem da transição à retomada do desenvolvimento. O novo é essa presença inalterada até agora do presidente diante do inconsciente popular, de apoio e persistência, inclusive para além de anticlímaces ou indigitados retrocessos, que teriam levado, na ótica das opiniões públicas tradicionais, a igualar-se Lula às platéias convencionais de aplauso, e sua lenta ladeira abaixo, após as primícias do novo e as tréguas de rigor oferecidas a um novo comando do Planalto. Não basta salientar-se como essa profunda comunicação se reitera na acolhida às idas do líder diferente a todos os cantos do país afligidos pelas catástrofes naturais ou já diante dos primeiros impactos do programa social em marcha, na extensão do Bolsa-Escola ou na chegada do Fome Zero.
As quedas de popularidade do último trimestre se suturam por uma credibilidade efetiva para o que vem por aí. Mas para lográ-lo como efetiva mudança no direito a desenhar um segundo mandato. Permaneceu intocado aquele núcleo básico do terço do país votado a Lula, e ao qual se soma agora a recuperação desses novos ricos da esperança, reconquistados na undécima hora do crer sem ver ainda. A corrida de fundo, de maratona, começa a dar os seus resultados fora da fixação na taxa de juros.
Jornal do Brasil (RJ) 11/8/2004