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Votar em quem e para quê?

 

Suspeitamos, muita gente e eu, que uma grande percentagem dos eleitores brasileiros, maior talvez do que se subestime na base do palpite, iria para a praia, o piscinão, o clube ou à pracinha, se não fosse obrigada a votar. Direito estranho esse, criação surrealista de nossa imaginação política, ou adaptação do que vigora, ou vigorou, em algum país que consideramos exemplar, ou seja, quase todos. É direito, mas, ao mesmo tempo, dever. Na verdade, esse “direito” seria perfeitamente dispensável, já que, de acordo com o que ouvimos, não se pode nem ir ao banheiro sem estar quites com a Justiça Eleitoral, ou seja, sem poder brandir o papelucho que recebemos depois de votar.


E a realidade mostra que o voto obrigatório se destina a legitimar uma escolha que de outro modo seria insignificante. Aqui no Rio mesmo, com esses praiões se espalhando de norte a sul, não seria impossível o sujeito se eleger vereador com uns 500 votos ou menos. Ninguém no Brasil poderia sair proclamando que tem o apoio de milhões de eleitores, porque não haveria - ou haveria poucos - milhões de eleitores. Com a obrigação, o sujeito vai lá, tapa o nariz e vota, seja o que Deus quiser. Claro, há exaltadas, patrióticas ou esperançosas exceções a essa postura, mas quase ninguém, que eu saiba, a não ser os candidatos, simpatiza com o voto obrigatório.


Mas, como é obrigação e dever, tenho forcejado por assistir à propaganda eleitoral e não entendo as diferenças, exceto pelo intercâmbio de alvos de acusações e xingamentos, entre os vários presidenciáveis. Todos prometem as mesmas coisas, às vezes em palavras diversas, mas com o mesmo conteúdo. Até o Lula, que faz muito deixou de ser operário e agora ambiciona a condição de estadista elegante. Todos vão gerar milhões de empregos. Todos vão forrar as cidades de casas populares, postos de saúde, escolas e assim por diante. E todos fazem outras promessas, que sabemos impossíveis de cumprir em quatro, ou mesmo oito anos.


Talvez essa mesmice se tenha fortalecido, como sugerem cientistas políticos, com a instituição do segundo turno. Oficialmente, o segundo turno é adotado para que o vencedor não ganhe com uma diferença pequena demais, assim sub-representando (como se algum político, com exceção de meia dúzia de três ou quatro, representasse alguém, a não ser a si mesmo, a família e aderentes) talvez até a maior parcela do povo. Mas, na verdade, o segundo turno teria outra finalidade. De olho nele, os candidatos se recusam a tomar posições extremas, para que, na eleição entre os dois primeiros, os eleitores que temem o extremismo prefiram votar nas idéias do candidato mais aproximado de suas posições. Ou seja, como já foi dito e repetido nos manuais, o segundo turno favorece os partidos de centro. No Brasil não há partidos - só o PT e, assim mesmo, descaracterizado cada vez mais, além de uns dois nanicos - e o segundo turno acaba por favorecer os candidatos de centro. É por isso que a gente lê o programa de um e não saberia distingui-lo de outro, se não viesse assinado, ou repetisse chavões já conhecidos em cada pseudopartido.


Além do mais, quem quiser que faça programas mirabolantes e inovadores, porque, na prática, eles não vão ser nada disso. As rotas principais já estão traçadas, tanto assim que os centros financeiros americanos pararam de ameaçar os brasileiros com penas avernais, se por acaso votássemos errado. No caso, seria Lula, mas este já percebeu que é preciso agradar universalmente para ter alguma chance, ainda mais com origem humilde, um dedo faltante, barba crescida, monoglotismo e esforço para parecer bem formado, da mesma maneira que o presidente Bush faz força para mostrar que está entendendo alguma coisa do que se passa. O Brasil está todo amarradinho pelo FMI e pela banca internacional. As nossas famosas elites só ligam para sua condição quando ameaçadas de seqüestro ou quando precisam dar dinheiro à cultura por renúncia fiscal (nunca doação, que eu saiba) ou, o que é mais freqüente, querem o dinheiro do governo, no caso o nosso. Ninguém vai poder passar do que já está decidido e dependemos, portanto, da capacidade de trabalho, coragem e inteligência do eleito, porque ele promete agir igualzinho aos outros.


Finalmente - e aqui me refiro outra vez ao Rio de Janeiro, embora pudesse incluir um monte de outras grandes e médias cidades - para que governo? Já temos governo e este se comunica por nomes que só os repórteres policiais e os encarcerados (sic) entendem. Ninguém se escandaliza mais com o que ocorre. A realidade é que só há poder do Estado onde os bandidos não acham aconselhável meter a colher. Se acharem, metem e ninguém pega. Quem decreta feriados, fecha escolas, autoriza o trânsito de mercadorias e pessoas, oferece assistência social e um sem-número de funções e atribuições do Estado não é o Estado, mas os bandidos. Qualquer um de nós - qualquer um mesmo, inclusive os mais prestigiosos, influentes e poderosos - pode estar sujeito a punições decretadas pelos fora-da-lei (melhor seria acima-da-lei), que variariam com o capricho dos líderes chamados de paralelos, quando todo mundo sabe que paralelo é o poder constituído, não o deles. O assassinato do jornalista Tim Lopes, aqui no Rio, acabou por evidenciar toda a impotência do aparato de segurança, que somente agora se redimiu, ainda que parcialmente. Eu também, se fosse lojista na Tijuca, acataria as ordens dos traficantes, sem me importar quanto à segurança que a polícia me prometesse. Vi um desses comerciantes falando a um repórter de TV. Tudo bem, ficariam um ou dois PMs bem armados à porta da minha loja, para esperar bandidos melhormente armados. Mas não só não ficariam para sempre, pois não há condições para isso, como apenas chamariam os bombeiros para catar meus restos, depois que me enfiassem uma granada na boca e puxassem o pino. Mas votemos, somos uma das maiores democracias do mundo e devemos ter orgulho desta condição. Até porque alimentar-se de ilusões e não enxergar um palmo adiante do nariz podem ser boas maneiras de enfrentar a vida. Pelo menos enquanto o próximo governo não assume e não decreta a Taxa Provisória de Respiração, que, óbvio, será permanente e envolverá somente tapar o nariz e a boca do inadimplente, até que ele pague. Mais um sacrifício do nosso bravo povo, além do que ajudará no controle populacional e ambiental.




O GLOBO (Rio de Janeiro - RJ) em 22/09/2002

O GLOBO (Rio de Janeiro - RJ) em, 22/09/2002