Costuma-se pensar que artistas de modo geral, inclusive os escritores, são ricos. Volta e meia sai uma reportagem que diz quanto um astro de TV famoso ganha e daí se difunde a crença de que artista é rico, quando, na verdade, matar cachorro a grito é atividade das mais exercidas pela maioria deles, mundialmente. Os escritores aparecem em notícias sobre como um romancista antes desconhecido vendeu para Hollywood, por zilhões de dólares, seu premiado best-seller. Ai de nós – escritor, quando é pago, recebe entre cinco a doze por cento do preço final do livro. E, não só aqui como no mundo todo, se vira em jornalismo, no ensino, na publicidade e em outros campos, já que de livro mesmo poucos conseguem sobreviver e ainda menos ficar ricos.
Paralelamente, cultiva-se como bela a imagem do artista faminto e penurioso, agasalhando-se do inverno com um casaco puído e esburacado pelas traças, afogando-se em álcool e desprezado por uma musa tão formosa quanto ingrata. Antigamente ele com frequência ficava tuberculoso e morria esquecido, num asilo para indigentes. Para o artista, esse ser privilegiado e superior, não são importantes as preocupações materiais e querer ganhar dinheiro com o que faz beira o sacrilégio, além de mercantilizar odiosamente o talento.
Se é verdade que a maior parte dos artistas é apenas remediada e olhe lá, a batalha por dinheiro sempre foi a regra e não a exceção. A lista é infindável. Balzac, Dickens e Dostoievski, por exemplo, passaram a vida disputando uns trocados e há quem diga que os dois primeiros morreram de trabalhar. A arte da Renascença era toda feita de encomenda. Os dramaturgos gregos escreviam suas peças para ganhar concursos, em meio a generalizada baixaria, como a difamação ou a ridicularização de concorrentes. Mozart era empregado da cozinha imperial e recebia encomendas do tipo “quero um concerto para piano e orquestra daqui a duas semanas e não me venha com repetições”. Bach escreveu os concertos de Brandemburgo para adular um governante, que, aliás, parece nunca ter chegado a ouvi-los. Shakespeare vivia catando histórias que dessem público e faturando o que podia como empresário.
E por aí vai, mesmo depois da implantação quase universal do direito autoral. O artista, seja ele escritor, compositor, pintor ou o que lá for, precisa e gosta de dinheiro tanto quanto qualquer outra pessoa. Mas os novos tempos aparentemente querem trazer a eliminação do direito autoral, ou impor-lhe severas restrições. Há muito que meus livros, incluindo versões em áudio abomináveis, estão disponíveis em dezenas de sites da Internet, sem que eu seja nem comunicado, quanto mais pago. Agora também sei que títulos meus estão sendo baixados em leitores eletrônicos, outra vez sem que nem eu nem meus editores tenhamos sido consultados.
Já estava resignado a essa pirataria, mas dizem que vêm mais novidades por aí. Li uma entrevista com um desses gênios da informática em que hoje o mundo abunda, na qual ele previu não somente o inexorável fim do livro impresso como a abolição dos direitos de autor. Perguntado como, neste caso, o escritor viveria, ele a princípio pareceu não saber ou não dar importância a pormenores dessa natureza, mas depois sugeriu que o escritor sobrevivesse fazendo apresentações públicas, leituras, performances pagas e coisas assim.
Não chegou ao ponto de outro, sobre cujas ideias também li não lembro onde, que recomendou que, com suas obras à disposição de graça, os escritores façam voto de pobreza como os franciscanos, ou arranjem, vendendo a alma ao demo como possam, um mecenato que os sustente. Pelo menos o primeiro ainda vê as apresentações como um reduto em que o escritor poderá refugiar-se. Claro, se este for gago ou tímido demais para exibir-se em público, vai ser um problema. Mas há maneiras de superar tais limitações e os escritores, em breve, estabeleceriam animada concorrência, um aprendendo mágicas para alternar com leituras, outro estudando sapateado e ainda outros, como o Veríssimo, pegando pesado com seu saxofone. Estou pensando em reagir aproveitando minha condição de baiano e montar uns shows casadinhos. Não conheço Daniela Mercury, Ivete Sangalo ou Margareth Menezes pessoalmente, mas tenho a esperança de que, com jeito, elas aceitem encaixar um número meu em seus shows, na base do “ajuda teu irmão”.
Pode ser que se esteja pensando também numa forma de remunerar o escritor que não dependa de vendas. O Governo faz uma seleção dos nomes qualificados para receber algum pagamento e dá a eles, por exemplo, uma bolsa romance. Mas receio que para conseguir essa bolsa, ou qualquer outro estipêndio do Estado, será necessário arrumar um pistolão. Ou entrar para um partido político que disponha de quotas da bolsa, como parte do tudo a que tem direito por aderir ao governo. Ou talvez seja melhor a realização de concursos públicos. Quem quiser ganhar alguma coisa como escritor será obrigado a fazer uma espécie de vestibular e os aprovados terão direito a uma carteirinha e a receber dois salários mínimos por mês para seu sustento, além de uma eventual bolsa romance, bolsa poema ou bolsa ensaio.
Seja o que Deus quiser, não se pode deter o progresso. Progresso este que faz um interessante revertério para o tempo em que o artista morria indigente. Ao que tudo indica, a moda está de volta e acho que vou procurar logo uma boa sarjeta e começar a treinar. Tenho, entretanto, um comentário final: tudo bem, são os novos tempos, mas os bens culturais “gratuitos” não são produzidos sem custos, pois não existe produto (ou almoço) de graça.
Muita gente ganha dinheiro com essa produção, em todos os seus estágios, muita gente é paga. Por que só quem não deve ser pago é o autor?
O Globo, 20/3/2011