Aproveitando a tarde chuvosa, decidi dar uma volta. Geralmente, costumo ir à praia, passear pela orla, mas caía uma garoa miúda e irritante, resolvi me embrenhar em outros bairros, distantes bairros de minha infância, que há muitos anos não visito, em parte por preguiça, em parte (ou no todo) por fastio. Peguei o carro e, sem saber o que fazer, fiz o que não devia.
Quando dei por mim, já estava naquele roteiro que inclui algumas ruas do Maracanã, de Vila Isabel, do Cabuçu e do Lins de Vasconcelos, cabeça, tronco e membros da antiga zona norte. Ali, a igreja onde me casei. Numa biografia bastante acidentada, com alguns casamentos incompletos, foi a única convolação de núpcias a que me submeti. Antigamente, os doutos usavam a expressão "convolar núpcias"para designar o casamento.
As recordações que ficaram não são necessariamente boas nem más, mas indiferentes. Foi um outro que convolou núpcias naquela igreja que tem um anjo São Miguel imitado da estátua do mesmo anjo na praça Saint Michel, em Paris: com sua espada de bronze, afasta um demônio de chifres e rabo em forma de seta.
Depois, o apartamento onde morei alguns anos, confortável apartamento com uma boa cobertura, ali minhas filhas brincaram e eu próprio soltei meus últimos balões de São João.
Depois, a rua da primeira escola, no enorme terreno ergueram um imenso hospital da Marinha e eu fugi daquele gigante que abriga os heróis da Armada de Guerra segun-
do as palavras gravadas no pórtico "art noveau" do hospital. Penso no nenhum sentido que delas resulta: armada de guerra. Um pleonasmo? Ou apenas uma bobagem?
De repente, dobro uma esquina e esbarro com a casa, milagrosamente intacta: a fachada de pó de pedra está bastante estragada, da última vez que ali estive, dez ou onze anos atrás, o aspecto era menos decadente. Sim, ali está a casa: ali nasceu o Tutuca, numa tarde de domingo, domingo de março, de um ano cada vez mais distante.
As recordações são poucas. Num início de noite, o pai foi àquele portão e apanhou um balão apagado e silencioso que vinha caindo, caindo, alguns moleques se juntaram do lado de fora para tascá-lo com seus varapaus homicidas, mas respeitaram o domínio do dono da casa, o balão é dele. Depois, ainda na época dos balões, o irmão mais velho de pelerine azul marinho por causa do frio de junho, armando sua barraquinha de fogos.
Uma lanterna vermelha avisava que um menino ali vendia fogos e eu era vidrado no estranho cheiro de pólvora e papel colado que sua barraquinha desprendia. Prometeram-me que eu também teria uma barraquinha igual quando crescesse eu cresci inutilmente, nunca mereci uma barraquinha daquelas, com a lanterna vermelha acesa no
meio da noite, bolas, não foi para isso que caminharia tanto na vida.Aliás, caminhei tanto para não sair do lugar.
Agora, a casa está meio decomposta pelos anos, dois enormes vira-latas se aproximam, latindo. Quando dão comigo, param de latir, metem osfocinhos pelas grades (as mesmas de antigamente) e me fuçam, como que me recebendo, eu, o Tutuca que nasceu naquela casa. Parece que sabem ou adivinham isso e eu me sinto importante ao menos para os cachorros.
O atual dono da casa vem saber por que os cachorros estão latindo. Não gosta de ver o estranho parado em seu portão. É homem meio gordo, usa camisa de malha branca sem mangas, está suado pela tarde abafada e chuvosa.
Pergunta o que desejo. Tenho vergonha de confessar o motivo que me levara ali, aliás, não tinha nenhum motivo para estar ali. Indago se o cidadão conhece um tal de Tutuca. Não, o homem não conhece Tutuca algum.
Eu insisto, afirmo que o tal Tutuca ali morou, era um garoto bochechudo e palerma. O homem faz uma cara escandalizada e me despacha, dizendo que tem mais o que fazer - eu o invejo, nada tinha para fazer.
Atravessei a rua e peguei o carro. O homem olhou admirado, pois me supunha um pedestre reles e enxerido. E nem adivinhou que o Tutuca nunca saiu daquela casa, aderente àquelas paredes descascadas e inarredável como um fantasma sem futuro.
Folha de São Paulo, 27/8/2010