Terminada a apuração dos votos da última eleição, com a vitória espetacular de Luiz Inácio Lula da Silva, verifico que tinha razão quando em artigo anterior (28/9) concluía que, ante um cenário político multifacetado, devido ao baralhamento das posições ideológicas e partidárias, o eleitor não podia senão votar em razão das qualidades pessoais atribuídas a seus candidatos.
Os resultados finais do pleito eleitoral demonstram que, efetivamente, prevaleceram as opções de ordem personalista, como o demonstra a gigantesca diferença de sufrágios conferidos a Lula e os dados ao Partido dos Trabalhadores nos diversos Estados da Federação, só capaz de eleger três governadores de reduzida expressão política.
A vitória, em suma, foi apenas da impressionante figura do presidente eleito, o qual somente influiu na votação para a Câmara dos Deputados e na de poucos senadores.
A bem ver, tivemos duas eleições paralelas, uma para os cargos federais e outra para os governos estaduais, nos quais prevaleceram fatores regionais, demonstrando que no Brasil o federalismo continua sendo uma realidade definitiva e decisiva.
Foi em vão que os líderes do PT tentaram impor a imagem de Lula na órbita das unidades federativas, proclamando as vantagens que resultariam do fato de serem do mesmo partido o presidente e os governadores.
O que aconteceu em São Paulo e no Rio Grande do Sul confirma a força dos interesses e questões regionais, explicando por que motivos a idéia federalista, no Brasil, já lança suas raízes no tempo do Império, de conformidade com a nunca esquecida confissão de Rui Barbosa de que fora federalista antes de tornar-se republicano.
Em São Paulo esse fator foi tão relevante que o governador Geraldo Alckmin teve, na terra paulista, mais votos do que Lula, tal a atenção dispensada pelos eleitores aos programas e obras de caráter local. Foi essa também a razão de ser do triunfo de Germano Rigotto, no Sul, pondo termo ao governo gaúcho nas mãos dos petistas, assim como antes já decidira a eleição, em primeiro turno, de Aécio Neves em Minas Gerais.
A meu ver, a persistência do valor federalista é da maior relevância, compreendendo-se por que o § 4º do artigo 60 da Constituição de 1988 não permite que possa ser objeto de deliberação a proposta de emenda constitucional tendente a abolir "a forma federativa de Estado".
Na atual conjuntura nacional, quando pairam dúvidas quanto ao efetivo abandono pelo PT de certas reivindicações que viriam comprometer o equilíbrio econômico-financeiro do País nos planos interno e externo, é benéfico o fato de não lhe caber o governo dos grandes Estados, sendo constituídos múltiplos centros autônomos de poder que poderão assegurar inédita experiência federativa, com maior correlação entre a União e os governos estaduais.
O prestígio pessoal de Lula não se estendeu, em suma, a seu partido, e isso poderá assegurar-lhe maior independência, facilitando e legitimando o seu propósito de constituir um governo substancialmente nacional, o único capaz de resolver os grandes problemas que nos desafiam desde a Carta Magna de 1988.
Não ponho em dúvida o compromisso de Lula com o valor da austeridade fiscal, exigindo o mesmo dos governadores estaduais, mas em matéria político-administrativa são da maior importância as circunstâncias e conjunturas que condicionam o exercício do poder.
Por outro lado, somente um alto pacto nacional poderá prevenir e evitar um dos maiores riscos do federalismo, que é a distorção do poder regional, como já se deu no Brasil quando governadores irresponsáveis malbarataram os recursos financeiros dos Estados, levando à falência bancos e empresas que antes figuravam entre os patrimônios mais consolidados do País.
Foram, aliás, esses ilícitos desvios que obrigaram o presidente Fernando Henrique Cardoso a transferir, corajosamente, para a União a responsabilidade por situações calamitosas que comprometiam todo o nosso sistema federativo. Esse episódio jamais deveria ser esquecido, sendo lamentável apenas que não se tivesse conseguido apurar as devidas responsabilidades, aplicando-se as sanções da lei.
A organização federativa é a única compatível com países, como o nosso, de imenso território, sem o que se descamba para a perniciosa centralização unitária do poder, com olvido ou desprezo de imensas peculiaridades regionais. Todavia, o federalismo pressupõe o mais apurado senso de responsabilidade, com lideranças políticas que aliem aos conhecimentos econômico-financeiros e administrativos a consciência ética essencial à gestão da coisa pública.
Como penso ter demonstrado em meu recente livro Brasil, Sociedade Plural, é o pluralismo que condiciona nosso ser histórico, possibilitando a formação do "homem cordial" aberto a todas as experiências da cultura universal, bem como a integração das múltiplas diferenças territoriais, demográficas e raciais que caracterizam a coletividade brasileira.
Pluralismo e federalismo são objetivos complementares reclamados pelos países que pretendem realizar "a unidade na diversidade", com distintos centros autônomos de poder interligados numa composição harmônica de valores locais e nacionais.
Foi o que revelou a eleição realizada em outubro de 2002, ao prestigiar, a um só tempo, o futuro presidente da República, colocando-o acima de seu partido, e a quase totalidade das agremiações políticas que contrapuseram ao centralismo do PT os valores e interesses de cada região do País, dando uma estupenda lição de realismo federativo.
O Estado de São Paulo (São Paulo - SP) em 09/11/2002