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Virgínia, a rebelde

 

Só o rebelde salva o mundo. A frase está no "Journal" de André Gide e aparece, com outras palavras, nos livros de todos os inquietos e inconformados: um Rimbaud, um Francis Thompson, um Graham Green, um Henry Miller, uma Virgínia Woolf. Mais do que revolucionários, foram eles rebeldes, sal da terra.


Claro que ocasionalmente um rebelde será também revolucionário, mas seu apego à escolha pessoal, à rebeldia isolada e eminentemente ética, tanto no sentido imediato da palavra moral como no mais amplo, de uma filosofia de vida, costuma levá-lo a recusar decisões coletivas e palavras de ordem que não estejam baseadas no respeito à pessoa humana.


Para marcar a diferença, pode-se classificar Fidel Castro de revolucionário. Mesmo no poder, ele é revolucionário. Já Che Guevara surge como o símbolo do rebelde, a quem o poder eventual não satisfaz porque sua inquietude é abrangente e implica num propósito de mudar, ao mesmo tempo, o homem e a sociedade.


A rebeldia de Virgínia Woolf atinge amplitude maior porque se dirigia contra um preconceito milenar aparentemente indestrutível: o da inferioridade intelectual da mulher. Em seu livro "Um teto todo seu" deixou ela as páginas mais veementes de sua rebeldia. O título original "A room of one's own" - que poderia ser também traduzido como "Um quarto todo seu" ou "Uma sala toda sua", isto é, um local de trabalho que pertença a quem escreve - engloba um ensaio sobre (contra) a posição inferior da mulher na literatura.


Analisa as dificuldades que a mulher inglesa e européia em geral tiveram para se impor como poetas ou romancistas. Em alguns casos até optaram por um pseudônimo de homem (como George Eliot na Inglaterra e George Sand na França).


Diz Virgínia Woolf que a mulher da ficção - romance, peça de teatro, poesia - pode ser até admirável e heróica, mas, na vida real, ela é "trancafiada, surrada e atirada pelo quarto". Todos a querem personagem, jamais autora do romance ou da peça e do poema. Virgínia cita palavras de Lady Winchilsea que, em 1661, escreveu: "Boa educação, dança, moda, roupas e divertimentos, eis os dotes que deveríamos desejar; escrever, ou ler, ou pensar só turvariam nossa beleza e esgotariam nosso tempo".


Radical mesmo foi a tese do professor Trevelyan, autor de "Uma história da Inglaterra", de quem Virgínia Woolf cita estas inacreditáveis palavras: "É impossível a qualquer mulher, do passado, do presente ou do futuro, ter a genialidade de Shakespeare". O mesmo Trevelyan, escrevendo em outro contexto, informou a uma consulente: "Os gatos, na verdade, não vão para o céu, embora tenham uma espécie de alma". Conclusão de Virgínia: "Os gatos não vão para o céu. As mulheres não podem escrever as peças de Shakespeare".


O final do ensaio é um apelo à mulheres: escrevam, façam qualquer coisa que justifique o impulso de vida de cada uma. Lembrem-se de que as universidades inglesas se abriram para as mulheres em 1660, de que votam desde 1919 e que hoje todas as profissões (ou a grande maioria delas) estão abertas às mulheres. Completando: "Como posso incentivá-las mais a empreenderem a tarefa de viver?"


Em suas pesquisas descobriu Virgínia Woolf (1882-1941) que, no seu tempo de vida, havia tantas mulheres escritoras como homens escritores e que, portanto, o equilíbrio entre os dois sexos já se apresentava como real. O estilo de uma prosa - que Virgínia disse alhures devia ter a "iluminação da poesia" juntamente com a precisão da forma - adquire, em "Um teto todo seu", um tom de rebeldia inteiramente de acordo com a revolta que existe na sua obra de ficção.


"Um teto todo seu", de Virgínia Woolf, é um livro firme, quase duro, que mostra a autora em toda a força de sua luta contra preconceitos e em favor de uma literatura aberta, capaz de nos representar a todos - homens e mulheres - como igualmente partícipes de um tempo e de um espaço que formam a base do que somos e fazemos.


"Um teto todo seu" tem a marca editorial da Nova Fronteira. Tradução de Vera Ribeiro, capa de Daniela Feccheimer, imagem de capa da Getty Images.




Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 22/11/2005

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro), 22/11/2005