O técnico trabalhava desde a manhã no velho computador, um 286, paquiderme eletrônico já naquela época.
Viera recomendado, era um entendido em informática. O governo brasileiro decretara a reserva de mercado para o mundo digital e, durante anos, fora difícil ter e manter bons equipamentos.
Somente por contrabando obtinham-se peças de reposição e aplicativos desenvolvidos. Mesmo assim, ele teimava em recuperar a memória. Ouvira dizer que nada se perde dentro do mundo eletrônico, seja qual for o programa instalado. A questão é saber acessar, perseguir a trilha dos arquivos deletados - tarefa impossível para ele. Faltavam-lhe competência e paciência.
Ao final da manhã, o rapaz desanimou. "Impossível o que o senhor quer." Pagou ao técnico o preço da visita, levou-o até a porta e voltou a olhar o monitor.
Muda, apagada, a tela cor de chumbo o intrigava. Tinha certeza de que, naquela manhã, ligara o equipamento e recebera uma foto, enviada não sabia por quem: a família inteira, inclusive ele, reunida na casa da rua Redentor, o avô no cimo da pirâmide formada por todos, amontoados nos degraus da escada que levava à varanda. Estavam lá, aqueles mortos todos. Gente demais.
Era raro e difícil enviar fotos pela internet, o processo de escanear tornara-se privilégio de universidades, das Forças Armadas. Tentara localizar o remetente, encontrara um endereço coletivo - impossível para um iniciante naquele mundo de gadgets descobrir quem lhe mandara aquilo.
Ou teria sido alucinação? Não existira foto alguma. Talvez fosse isso mesmo. A foto não estava na telinha, dentro do computador. Acessara a tela da memória e vira aquela gente toda, toda aquela gente viva, com a cara descorada dos mortos.
Folha de São Paulo, 3/4/2012