"É o final de um dos romances de Émile Zola, "A Fecundidade". Ao terminar o gigantesco projeto dos Rougon-Macquart ("História Natural e Social de uma Família sob o Segundo Império"), Zola escreveria o que chamou de seus quatro evangelhos: a fecundidade, o trabalho, a justiça e a verdade. O primeiro deles termina com o grito de uma jovem camponesa varando a tarde e o campo: "A vaca pariu um bezerro!"
Felizmente -digo eu, que não sou camponês nem pertenço a nenhuma família sob o segundo ou qualquer outro império. No romance de Zola, o grito da camponesa começa, encerra e sublima a maravilhosa rotina do viver, a terra parindo seus frutos e os habitantes da terra parindo seus filhos. Inclusive as vacas.
A garantia dessa rotina, afinal, é o que nos salva. Lembro uma de nossas crises políticas, das mais "brabas", a que provocou o suicídio de Getulio Vargas em 1954. Eu trabalhava então num jornal aqui do Rio de Janeiro e passara duas noites sem ir para casa, sem fazer barba, sem mudar de roupa. Substituía em certas horas o repórter destacado para cobrir a crise dentro do próprio palácio.
O mundo parecia ter vindo abaixo. Na altura do terceiro dia de vigília, caí numa poltrona das mais anônimas e modestas do Palácio do Catete. Ali tirava alguns cochilos, interrompidos por novidades sempre dramáticas.
Curioso: durante aqueles dias e noites, enquanto ninguém poderia prever o desfecho, surgiam dramas paralelos que, embora não confirmados, explodiam entre os jornalistas como novo e incontrolável incêndio: Juarez Távora enforcou-se no apartamento do Brigadeiro Eduardo Gomes! Lutero Vargas foi assassinado por um oficial da Aeronáutica! Lacerda foi sequestrado por operários fieis a Vargas! O marechal Mascarenhas de Moraes morreu de enfarte! Coisas assim.
Bem, na altura do terceiro dia, as emoções iniciavam o longo caminho do retrocesso e tudo ia quase voltando à normalidade de uma crise. Mais boatos do que fatos e todo mundo torcendo por um ou outro lado. Foi então que um colega, também tresnoitado, olhou pela janela e viu um enorme abacate pendurado de seu galho (hoje, não acredito que existam abacateiros nos jardins do Palácio do Catete, mas naquele tempo havia, tenho certeza).
O colega olhou atentamente o abacate, silencioso fruto caindo de seu galho, verde e necessário, feito em silêncio e em trabalho vegetal de sua espécie. De repente, comentou em voz alta:
- Felizmente, tudo continua!
Eu não entendi logo. Na fadiga daqueles dias, o "tudo" para mim era a crise em si, o Brasil atravessando o vendaval. Tão grave era a crise que nada seria como antes e nada mais continuaria. Um apocalipse em plena rua do Catete, com suas lojas de móveis baratos, seus botequins cheios de mosquitos. Foi preciso que eu olhasse na direção da janela e também visse o abacate ali, verde, inchado em sua carne verde-amarelada.
Aquele abacate havia sido apenas uma flor semanas antes, e Vargas provavelmente a olhou com seus olhos periféricos de inseto, soprando a fumaça de seus imensos havanas. Agora, Vargas dera um tiro no peito e a flor tornara-se fruto, e ali estava oferecendo-se à janela e aos nossos olhos vermelhos de sono e doídos de cansaço e estupor.
Sim, tudo continuava, o mundo daria outras voltas, outras crises maiores ou menores viriam, mas os abacates continuariam sendo abacates e Vargas, bem, o que seria Vargas dali a dez, 20 ou dali a 60 anos? Um nome na enciclopédia, nas praças e placas das cidades brasileiras?
Crianças e jovens passariam nessas ruas e nem se incomodariam em saber quem fora Getulio Vargas. Um homem de 71 anos dera um tiro no peito, soldados cercavam o palácio presidencial e eu passara dois dias sem poder ir para casa. Enquanto isso, os abacateiros davam flor e fruto. A vida continuaria. A natureza é arrogante em sua fecundidade, os homens é que são estéreis em sua finitude.
Volto ao romance de Zola. A vaca pariu um bezerro. Um abacate, qualquer abacate, vale mais do que uma crise política. A vida é mais importante do que a história.
Folha de São Paulo, 10/9/2010