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Vida arriscada

 

De vez em quando sai uma matéria mostrando como, entre as profissões mais perigosas, está a de jornalista. No meu caso, acho que apenas enfrentei uns periguetes de quinta categoria, que não dão para adornar nem uma notinha biográfica e fazem parte do ramerrão de qualquer um que haja trabalhado em redações antes do computador. (Outro dia, visitei uma redação toda eletrônica, quieta, silenciosa e álgida e senti bem na carne o que é viver duas eras distintas. Diante das velhas redações de máquinas mecânicas, fumaça e berreiro, as de hoje são CTI”s – e de fato essa que vi me lembrou a ambiência de um CTI. É a idade mesmo, mas tenho saudades de minhas velhas redações e o teclado de meu computador faz todos os barulhinhos das antigas máquinas mecânicas, me rejuvenesce.) De qualquer forma, no meu tempo de foca, o pessoal falava muito em jornalistas do interior que haviam sido obrigados a comer a página de seu jornal que continha uma opinião considerada descortês, pelo coronel da área. Na capital, a gente fazia cara séria, quando os colegas do interior vinham relatar seus dramas, dávamos abraços de solidariedade e denunciávamos o abuso.

Não deixava de haver certa valentia nessas denúncias, pois alguém sempre lembrava a história, fictícia ou não, de um jornalista da capital ser também obrigado a almoçar um artigo seu. Conheci de longe um colega sertanejo que, segundo se comentava à boca não tão pequena, comera verso por verso de um poema satírico com que desgostara o coronel de sua terra. A gente o tratava com deferência e respeito, mas, sendo a natureza humana o que é, todo mundo dava uma risadinha disfarçada quando ele passava – devia ser por causa do apelido que ele pegou, pelo qual era universalmente conhecido e o qual não vou reproduzir aqui, bastando que se saiba que era um verbo chulo seguido da palavra “rima”. Até no enterro dele usaram esse apelido.

Quando o jornalista, além de repórter, é fotógrafo ou cinegrafista, a barra pesa muito. Sempre que vejo esses documentários épicos sobre explorações em águas profundas ou entre tubarões, escaladas de picos inacessíveis, intimidade de feras selvagens e coisas assim, só penso nos cinegrafistas. Todos eles deviam receber medalhas por bravura, mas espelho meu comportamento em relação a esse assunto no exemplo dado, antes mesmo de eu nascer, pelo finado Quininho Viola, pioneiro do jornalismo em Itaparica.

Deu-se que Itaparica, que nessa época era bem mais próspera que depois que a prosperidade chegou, foi visitada por um circo, que, entre outras atrações, contava com um leão chamado Gengis Kan. Não sei bem como é que foi a conversa, mas o dono do circo encomendou a Quininho um cartaz e um anúncio do circo. A estrela tinha que ser o leão, besta-fera invencível, rei de todos os animais. Num particular havido a portas fechadas, o dono do circo esclareceu a Quininho certas verdades sobre Gengis Kan. Era cego de um olho e meio cego de outro. Não tinha dentes, não tinha garras, mais pigarreava do que rugia e vivia de uma dieta de mingau de aveia com banana e os restos de comida que lhe apetecessem. Para levantar uma pata era um custo.

Quininho se reproclamou um homem arrojado, jornalista valente, não ia correr da presa. E, bem no horário estabelecido, lá estava ele no circo. Como é, haviam providenciado o escudo que ele encomendara? Sem escudo, nem pensar. E o debate encheu a noite, até que Quininho disse que ia lá atrás, pegar a máquina, que era daquelas grandalhonas que pareciam um farol. Demorou bastante lá atrás, mas voltou. Botou só metade do corpo para dentro do recinto onde Gengis Kan já dormia o oitavo sono, arregalou os olhos e sussurrou:

- Amarraram bem o bicho?

Sim, não houve nem fotografia, nem anúncio, nem cartaz. Ainda peguei o finado Quininho vivo e ele me explicou que não era nada daquilo que contavam, ele não era um fotógrafo comercial, apenas isso. E o leão era um animal estrangeiro em nossa fauna, não havia por que prestigiá-lo, ninguém aqui era Tarzan. Se fosse uma onça, aí sim, a conversa seria outra. Infelizmente, durante todo esse tempo, nem circo nem onça apareceram mais em Itaparica, de forma que de Quininho só resta mesmo o exemplo a seguir.

Munido de tais precedentes e tal filosofia, acredito-me bem distante do epicentro dos perigos jornalísticos. Se já era ruim de reportagem quando fui repórter, pior hei de ter ficado, com o tempo. E aí me limito, às vezes não sem certa melancolia de tanto ver chover no molhado, a denunciar ou criticar o que julgo merecedor. O governo, os governantes e o Estado são alvos permanentes porque estão envolvidos em tudo no Brasil, e tomam tal parte em nossa vida, a começar por impostos, que acabam responsáveis por tudo o que de mau acontece.

Pronto, qual é perigo que oferece mais esta vida? A época dos escritores aventureiros já passou, desde Jack London e Hemingway. Até, embora se trate de outro tipo de aventura, a voga do Castañeda já passou. É verdade, penso eu, com a serenidade de quem deixou para trás as fases mais arriscadas da vida. Ou não? Deixei nada. O noticiário norueguês me lembra outra vez de que tenho a cara errada em toda parte. Tenho cara de turco na Alemanha, cara de árabe na França, cara de hispano nos Estados Unidos, cara de latino-americano na Espanha, cara e fala de brasileiro em Portugal, cara de nordestino, cara de mestiço, um desastre em toda a linha. Mas não será por isso que eu vou desistir de viajar. Eu sou aquele sem bigode, de cabeça raspada e de olhos verdes, lá no fundo. Espero me acostumar às lentes de contato, porque olhos castanhos, sopra-me do além Quininho, já são meio caminho andado para tomar um tirambaço europeu. A Humanidade não progrede, me garantiu também ele.

O Globo, 7/8/2011