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A vez e a voz do eleitor

 

A densidade da crise neste início de ano tem já um resultado definitivo. Os lamentos do nepotismo do Judiciário em face da decisão do Supremo levaram até à greve grotesca da magistratura de Minas Gerais, ao insistir no mais crasso dos abusos do velho sistema: a privatização imemorial das vantagens do exercício do poder. Ficará na crônica do nosso aperfeiçoamento democrático o aferro à provisão dos cargos públicos, pelo exercício mais desinibido do casuísmo, em bem de emprego familiar, frente à norma do novo Conselho Nacional de Justiça.


A decisão peremptória do Supremo virou a página na apropriação dos empregos do Estado pelos seus titulares imediatos, em benefício da parentela de sangue e do DNA, que leva a família unida no abuso mais clássico ao nosso estado de direito. Começa, num efeito contundente, o controle externo entre os poderes, estendida ao Judiciário, num aprofundamento inequívoco da democracia brasileira. Mas percamos as esperanças de que, em novo passo, ao lado do nepotismo, derrube-se de vez a clientela e o aluguel da força política no Legislativo. O mensalão resistiu e vamos às próximas eleições com a impunidade de sempre do caixa 2 para os dispêndios e a folgança dos vencedores.


Aí estão as lamentações da Comissão de Ética, no Congresso, na véspera da chopada amiga dos evadidos da cassação, após o voto permissivo do plenário. O ex-deputado Pedro Correa quase se safa também, não obstante a confissão pública e contundente de ter embolsado dinheiro envenenado. Sua imprudência o levou ao cutelo, por escapar à “falta objetiva” de provas, como rezou a regra prática do acordão, a absolver Roberto Brant e, na fieira, tutti quanti não se tenham açodado em violar o perdão combinado.


Todas as lamentações e iras cívicas da epopéia grotesca da denúncia de Roberto Jefferson progrediram, afinal, do banho-maria do óbvio para o final mofino, e previsibilíssimo, do anticlímax. Desimpediu-o o exorcismo simétrico do sacrifício de Jefferson e de Dirceu.


Montou-se todo um cenário da melhor sabedoria política do velho regime, entre sacrifícios mínimos, contundências e declarações de relatorias e promessas vagas, afinal, das reformas políticas para as eleições de aqui a quatro anos. Foram ao plenário os primeiros cassáveis com a certeza de sua absolvição - o tapa no ombro e a mornidão lasciva do abraço dos colegas - a celebrar a continuação garantida dos mensalões.


O caixa 2 de tais políticos só fez ganhar, no vocabulário da modernização tecnocrática, a designação de “recursos não-contabilizados” de campanha. E é o que estimula novos esquemas à Valério para mais sofisticadas licitações.


Valha-nos ainda, frente à regressão esperada, a esperança de que se possa manter a verticalização das alianças políticas, ora assegurada pelo Supremo, que tornou obrigatória a consonância mínima entre candidaturas de legendas federal e estadual. Era um começo de fidelidade a idéias e programas, frente ao desconchavado do leilão de votos da hora.


Como vai a opinião pública às novas eleições, fechando os ouvidos ao restolho dos inquéritos parlamentares, passando a outra pauta de prioridades na opção por Lula? Sucumbiriam, no mensalão, os partidos das ditas melhores grifes antigoverno? Diante da impunidade consentida e temerária, como reagirá o voto de outubro? Castigará os beneficiários do acordão, partirá para o voto nulo, de inquietantes reflexos na institucionalização democrática? Que saldo tem a paciência-cidadã, diante da frustração política em que, no Brasil, “o povo como povo” - dizia tão bem Santiago Dantas - “é melhor que a elite como elite”?


Nesse jogo de avanços e recuos, até onde o abate do nepotismo no Judiciário safa a desmoralização do Congresso? Cabe ao eleitorado - e a ele, tão-só - no novo Congresso em que votará, dar um basta no clientelismo e no caixa 2, que os donos do poder insistem em manter como cosa nostra.


 


Jornal O Globo (Rio de Janeiro) 30/03/2006

Jornal O Globo (Rio de Janeiro), 30/03/2006