Depois da revolução árabe vamos, de fato, à democracia? Ou estamos mergulhando no fundamentalismo, no Ocidente ou no Oriente Médio, num sentimento defensivo de identidade e não de efetiva coexistência internacional? A recente Conferência da Academia da Latinidade, realizada em Barcelona, examinou este contraponto, onde está em causa a possível regressão do pluralismo político sob o álibi do arranco democrático e do abate das ditaduras no Mediterrâneo muçulmano. Começam as interrogações com a reforma constitucional da Tunísia, que rejeitou o laicismo, e o perigo da aparição de partidos únicos, como o da Fraternidade Muçulmana, num novo alinhamento pressentido das forças políticas, no Egito.
No pano de fundo, levanta-se o risco de que o Mediterrâneo árabe ressuscite a identidade muçulmana numa reprise da revolução iraniana. E isto, já, quando o acirramento do terrorismo. abre o espectro de uma "guerra de religiões". A luta pelas novas liberdades na região, tal como evidencia a Líbia, não pode implicar a falta de uma verdadeira consciência de mudança na regressão ao complexo tribal, nos rachas clânicos entre Trípoli e Benghazi, frente a um país em que o protagonismo de Kadhafi despertou o sentimento da frágil nacionalidade emergente. Não é outra, aliás, a situação do Iêmen, já devorado pelas hierarquias familiares, inclusive, com a instalação mais profunda em toda a área dos enclaves da Al-Qaeda.
A Conferência de Barcelona debruçou-se, ao mesmo tempo, sobre o reflexo da dita primavera democrática árabe sob um Ocidente, hoje, instintivamente defensivo, e numa contradição crescente com que o século XXI se via como da cultura da paz, da universalização da cidadania e da laicidade. Já, nos tempos do Bushismo, os EUA se identificaram com a defesa de um fundamentalismo cristão, e o novo radicalismo republicano expresso no tea party advoga, sumariamente, a reivindicação dos árabes do território, de par com a luta contra o aborto e a proscrição do casamento gay. Os EUA, depurados, investem contra os chicanos, e a sua só aparência permite a prisão sumária, sob a presunção de clandestinidade, no estado do Arkansas. A mesma vaga exclusivista se abate sobre a Europa, quando Angela Merkel renega o multiculturalismo e Cameron prega uma imigração "boa", liberta crescentemente de árabes.
Num claro contraste, a América Latina já parece ter superado o perigo fundamentalista, levantado nas últimas décadas, com a criação do país Aymara, na Bolívia, e do Quéchua, no Equador. A nova Constituição de Morales avança no verdadeiro pluralismo, constituindo um Estado com muitas nações e fugindo da armadilha identitária no sentimento coletivo. Mas o que a Conferência de Barcelona arrematou foi o começo de uma verdadeira prospectiva na globalização emergente. Ao mais, a hegemônica, de há uma década, mais a da coexistência com os Brics e a superação, dê vez, de um mundo de centros e periferias.
O Globo, 20/6/2011