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A verdade no palco

 

Vem o centenário de nascimento de Jean-Paul Sartre provocando um movimento, não só de homenagens, mas também de reavaliação de sua obra, tanto a do filósofo e ficcionista como a do teatrólogo. Da série de reedições que a editora Nova Fronteira vem apresentando, consta a de "As moscas", talvez o texto de teatro mais forte do autor.


Há menos de uma semana, organizou a Maison de France do Rio de Janeiro uma noite dedicada a Sartre, durante a qual uma escritora canadense-francesa, Madeleine Gobeil-Noel, fez um relato comovente do tempo em que trabalhou com o casal Sartre-Simone de Beauvoir. Foi mostrado, em seguida, um documentário cinematográfico em que Jean-Paul e Simone, acompanhados por Medeleine, caminham pelas ruas de Paris e falam de si mesmos, de suas obras e da luta pela paz que Sartre empreendia incessantemente.


Com relação ao lado teatral de sua atividade, eis um assunto que, logo de início, merece análise: o da verdade no teatro. Mais do que num livro, mais do que numa aula ou conferência, é no espaço de um tablado que se tem a verdade frente a frente, nua e crua. O diálogo e o monólogo, ouvidos, têm mais força do que lidos. Com a vantagem de que podem também ser acompanhados pelo livro.


No teatro, a voz como que se infiltra no corpo todo de um ouvinte, em frases que se fixam, à vezes para sempre, na memória. Quem ouviu o quase grito de Madame Clecy, "Gente morta como fica!", ao se deparar com o rosto de um cadáver em "Vestido de noiva", de Nelson Rodrigues, nunca mais se esqueceu daquele espanto.


Sartre resolveu chamar a peça "As moscas" de "Teatro de situação". Era no tempo em que Vichy se apresentava como um falso Estado francês e adotava, por isto, uma liberdade "situada" e coagida. Na realidade, o Sartre de "O ser e o nada" está presente em "As moscas". Talvez o ser e o nada sejam o chão, o solo, o barro, a terra, sobre o que haja Sartre erguido toda sua obra.


Simone de Beauvoir observa que Sartre escreveu "As moscas" porque via, nesse texto para teatro, a melhor forma de resistência a Vichy e a tudo o que Pétain representava naquele momento. Sartre usa, aí, personagens gregos - Orestes, Clitmnestra, Electra - numa ligação com os mais antigos exemplos de tragédia posta no palco, onde a verdade costuma aparecer.


Vale a pena lembrar que, por exemplo, em "Hamlet", o problema da verdade atravessa cada momento da tragédia. Hamlet enfrenta a verdade, mas não consegue vencê-la: vê tudo, comenta detalhes de cada atitude de Ofélia, da mãe, do tio, leva o espectador a entender a verdade existente em cada um, mas não se revela de todo, fica sendo um mistério em que se alternam a ação e a inação. Deixa, acima de tudo, seu nome como símbolo da indecisão.


No caso de "As moscas", o que não falta aos seus personagens

é decisão. O problema da liberdade permeia toda a peça. Dirigindo-se a Electra, usa Orestes as seguintes palavras "Sou livre, Electra: a liberdade desabou sobre mim como um raio". Daí, também, a concepção de Sartre que via o teatro como um verdadeiro "fenômeno coletivo e religioso". Assistir a uma tragédia seria como chegar perto de um sentimento místico, e devoto, com força para empolgar os que vêem no trágico um talvez caminho para o entendimento das coisas.


Em sua apresentação ao volume, diz Caio Liudvik que, no caso do teatro de Sartre, a religião apresentada seria "atéia e humanista" e lembra, a propósito, outra peça de Sartre, "O diabo e o bom Deus", cujo personagem, Goetz, deseja uma noite profunda em que ele e a amada possam "esconder-se de Deus" e recebe dela esta resposta: "O amor é essa noite. Deus não vê as pessoas que se amam".


No fundo, a filosofia da convivência, que Sartre mostra na sua talvez obra prima teatral, "Huis Clos", se repete em outras peças, com a frase "o inimigo é o outro" funcionando como lema de um caminho e de uma atitude. O próprio Sartre chamou "As moscas" de "tragédia da liberdade em oposição à tragédia da fatalidade".


Esta, como outras peças de Sartre, leva a uma nova concepção do teatro sendo retrato do homem, antes de tudo, preso ao seu destino de ser livre. Não vê ele outro caminho senão o da liberdade. E o teatro é o meio direto de se lutar por uma liberdade real. Tudo o que diz respeito ao palco, a espaço de um tablado em que atores e atrizes se juntam, pode sugerir-nos a conclusão de que existimos todos num palco, nele vivemos, nele falamos, nele somos os autores de cada palavra ou deixa, nele percebemos a força e a infuência daquele chão ao mesmo tempo limitado e sem limites, em que as coisas acontecem e onde somos obrigados a nos reconhecer como reprodução de nossas grandes ou pequenas tragédias ou desafios de cada instante.


"As moscas", de Jean-Paul Sartre, é uma apresentação da Editora Nova Fronteira. Tradução de Caio Liudvik, que também assina a apresentação do volume. Capa de Victor Burton sobre óleo de Carek Willink.




Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 11/10/2005

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro), 11/10/2005