Há uma verdade da ficção. Uma verdade oposta ao convencionalismo das verdades estabelecidas que, ao proteger o homem contra a nudez das novidades e a solidão dos avanços, também podem matar, nele, a inteligência da realidade, a alegria da experiência e o sentido da dignidade essencial do ser humano. Essa verdade, íntima e jovem, que a ficção contém é a matéria a um tempo dura e maleável (e durável), sobre que trabalham os narradores de histórias.
Num país como o Brasil, de variada composição populacional, costuma a ficção dizer mais verdades do que muitos relatos tidos por históricos. É nela, na ficção nossa de cada dia, que a vida normal de uma comunidade assume realce maior. Isso pode significar uma vantagem no necessário registro de acontecimentos a que estamos permanentemente ligados. Daí, um sempre renovado suceder de flagrantes que um escritor pode captar na sua análise do que somos e do que fazemos.
É na sabedoria com que flagra momentos da existencialidade brasileira que está a força deste livro de Artur da Távola, que se chama precisamente “Em flagrante”. As pessoas agem como agem, são como são, e às vezes o narrador mergulha nas palavras, acossado palas imagens do mundo circundante. O que nos cerca é a metrópole, fenômeno do século em vias de determinar. Inserido nas dobras dessa realidade, Artur da Távola usa uma linguagem tensa, desprovidas de enfeites, capaz de revelar a pungência dos encontros e desencontros das gentes. Diz Arnald Toynbee, em seu A study of history , que ao aceitar as máquinas do Ocidente, pensa o oriental que pode manter intactos seus costumes e suas crenças, sem se aperceber de que, no simples uso de um aparato mecânico estranho, feito pelos infiéis, aquelas crenças e aqueles costumes passam a sofrer modificações.
O mundo em que o autor de "Em flagrante" coloca seus personagens, e deles se utiliza em ações de busca e perda, de perplexidade e angústia, é hoje nosso, deste pedaço de chão em que nascemos e aprendemos a ser gente, mas também vem de fora, de todo universo totalizado, com suas novas máquinas, suas palavras-de-ordem , seus muitos sonhos de aquisição e consumo. Aquilo que Proust fez, na época pós-Sedan, já com o cinema, o avião e o automóvel, ganha, nesta transição de um tempo, uma nova dimensão que Artur da Távola aproveita de modo eminentemente adequado em sua série de flagrantes apanhados no bisturi de uma implacável análise de situações.
Vejam-se os 13 “quadros” - chamemo-los assim - do setor do livro chamado “Cidade flagrante”. O cego confundido com um ladrão, com as opiniões de um marxista, um jornal, um padre, um industrial, traçam um retrato perfeito da metrópole perdida em si mesma. A mulher do metrô aparece num exame de consciência que não faz prever o fim da história. O motel de “Vida copia folhetim” não poderia ter sido concebido para entrar num romance citadino de José de Alencar ou Machado de Assis. As favelas e seus problemas, a pobreza de sempre, os drogados, a realidade inteira dos que vivem em barracos, Dona Ermelinda travestida de cigana, aparecem com suas histórias, aventuras, felicidades, num testemunho da cidade maior que insiste em se manter de pé.
As realidades de um país costumam impor sua entrada na ficção de seus escritores. E é sempre uma alegria para a literatura quando um romance novo ou uma série de contos se apossam de um trecho inédito de uma comunidade. O que os cantadores do Nordeste brasileiro cantavam nas feiras acabaram desaguando em romances daquela região e, com isso, ganharam mundo e fama. Guimarães Rosa não cresceu apenas como narrador que renovou nosso estilo, nosso modo de falar, de dizer coisas. Com ele, foram as Gerais que se afirmaram, foi o centro sociológico do Brasil que penetrou na Literatura. Como o Dantas Mota de “Elegia do País das Gerais”. Agora, novas feições e novos falares do povo tornam-se matéria e verbo neste livro de Artur da Távola, “Em flagrante”.
O tipo de romance (ou poesia, peça de teatro, conto) não chega a revelar a-priori um significado ou um critério. O importante é que, na sua categoria, isto é, no terreno em que o próprio autor desejou situar-se, atinja a obra a largueza que se exige de qualquer obra de comunicação. No caso de Artur da Távola, até a ironia e o senso de humor se misturam para realçar os personagens de sua cavalgada sem freio de histórias. O tom de ironia parece pedir desculpas e lamentar que a população de seus contos sejam como são, e que a vida tenha aspecto que ele mostra.
“Em flagrante” de Artur da Távola, é mais um bom lançamento da Editora Bluhm. Quarta capa de Carlos Nejar . “Orelha” de Muniz Sodré.
Lux Jornal - Tribuna da Imprensa - Rio de Janeiro - RJ, 25/10/00