Como se sabe, ter uma bela qualidade de vida na velhice depende fundamentalmente de se ter uma péssima qualidade de vida na juventude e na maturidade. Nenhum relacionamento com comida, por exemplo, pode ser prazeroso e livre, mas fiscalizado com desconfiança.
Claro, com o tempo o sujeito é até sincero, quando descreve como delicioso um milk-shake de leite de soja, castanha-do-pará e capins de diversas espécies, sem gelo ou adoçantes e nada “químico” (palavra cujo emprego nunca entendi direito, pois tudo o que existe é, de certa forma, químico). A gente se acostuma a qualquer coisa e não se deve dizer “esse milk-shake eu jamais tomarei”. O mesmo com exercícios físicos e mentais. Aqueles são antinaturais e estes requerem que se goste de fazer palavras cruzadas ou resolver problemas matemáticos, atividades que, se eu dependesse delas para viver, já estaria na cova faz muito. E por aí vamos, a vida da pessoa com qualidade de vida não é moleza, depende de muito esforço, não é assim para qualquer um, como eu.
Agora mesmo, me chegam pela internet diversos e-mails denunciando virulentamente o leite. Se vocês pensam que o ovo, em passado recente, era o pior vilão imaginável, com sua carga fatal de colesterol, não sabem nada do leite agora. O leite e seus derivados, ou qualquer alimento que os contenha.
Ou seja, esquecer iogurte, queijo, biscoito, bolo, sorvete e não sei mais quantas comidas que levam queijo. Nem um parmesãozinho ralado em cima do macarrão, perigo, perigo. (Por sinal, não se esqueça de checar se o macarrão tem glúten.) Diz aqui que uma paciente de câncer praticamente terminal teve a idéia de abolir o leite e seus nefários derivados de sua dieta e, em pouquíssimo tempo, a doença regrediu sem deixar rastro.
Daí para asseverarem que brigadeiro dá câncer e leite condensado pode matar subitamente, se ingerido em doses elevadas, como as obtidas mamando na lata, é um pequeno passo.
Tudo isso não causaria preocupação em quem pretende continuar a consumir bolos e sorvetes, se não fosse pelo hábito que nossos governantes têm, de meter o bedelho em tudo o que o cidadão faz. Aqui, nem uma boa deserdada num herdeiro detestável o sujeito pode dar, porque há uma parte que forçosamente irá para esse herdeiro.
Há uns poucos anos, um deputado federal teve seus quinze minutos de fama, ao apresentar um projeto proibindo os donos de animais domésticos de pôr nome de gente nos ditos animais. Não duvido nada que haja um ou mais projetos, dormindo na gaveta de alguma comissão, com o objetivo de traçar diretivas para os atos sexuais, com multas para maridos que não levem a mulher ao orgasmo pelo menos uma vez em cada três (a popular uma-em-três) ou mulheres que não cedam a determinados caprichos do cônjuge, outros especificando as normas a que estão submetidos todos os que usarem um banheiro, outros proibindo beber, mesmo em casa, em dias úteis, e assim por diante.
Destarte, na qualidade de residente, contribuinte e eleitor da inigualável cidade do Rio de Janeiro e, ai de mim, na condição oficial de ancião (se bem que eu prefira logo ancião a me classificarem como “na melhor idade”, caso que já é para reagir à bala, aqui pra sua melhor idade), encaro com sentimentos ambivalentes a criação da Secretaria Municipal de Envelhecimento Saudável e Qualidade de Vida.
Para os mais distraídos, informo, é isso mesmo que vocês leram, agora vamos ter toda uma secretaria dedicada ao crescente número de coroas que persistem em continuar vivos sem nenhum motivo realmente defensável. Somos, pois, com a óbvia exceção da encantadora leitora, coroas municipais.
À primeira vista, isso pode parecer bom para a categoria, mas estamos no Brasil, onde o Estado não existe para servir ao cidadão, mas o contrário. As atividades básicas dessa Secretaria terminarão por ser uma aporrinhação a mais em nosso juízo. Sou capaz de apostar que o primeiro ato cogitado será o cadastramento de todos os coroas da cidade, mediante o simples preenchimento de um formulário com 115 perguntas, o que pode ser feito em minutos pela internet. Quem não se cadastrar e receber a nova Carteira de Ancião perderá o direito a usufruir de qualquer benefício ou equipamento municipal. Sentou em banco de praça, o fiscal passa, não tem carteira, multa no véio — como parte de um processo educativo gradual. Entrou na fila dos idosos sem a carteira, mais multa. Enfim, todos os idosos vão querer suas carteiras e as incontáveis vantagens que ela certamente oferecerá.
E haverá as áreas onde eles serão protegidos. Por exemplo, podese proibir bares e restaurantes de servir bebidas alcoólicas aos clientes que não provarem ter menos de 70 anos, porque, depois dessa idade, o álcool faz cada vez mais mal ao organismo e, se o velho não sabe proteger-se, protegê-loaacute; a prefeitura.
A mesma coisa com cigarro.
Multa também para coroa que não ande no calçadão ou não freqüente academia ou não tenha personal trainer. Multa para coroa que fume em público. Multa em restaurante que servir a coroas pratos com teor de gordura acima do permitido por postura municipal e não incluírem. Acho que os colegas que me lêem, corôos e coroas do nosso amado Rio de Janeiro, tenderão a concordar comigo que é menos arriscado ficar sem essa secretaria mesmo. No mínimo são menos formulários para preencher.
Bem, não vamos ser pessimistas, pode ser que a nova secretaria traga benefícios inesperados para nossa sofrida categoria. Mas, por via das dúvidas, creio que falo por todos, quando digo que queremos nossa parte em dinheiro. Não é por nada, não, é porque já não estamos mais em idade de acreditar em lerolero. E porque, de qualquer forma, é dinheiro nosso mesmo.
O Globo (RJ) 30/11/2008