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Velhos rastilhos, novos gatilhos

 

A reunião recém terminada em Doha, da Aliança para as Civilizações, com a presença de Kofi Annan, evidenciou o nível em que a hegemonia mundial pode, nestes dias, repetir o quadro do pós-setembro de 2001. O Governo Bush não deixa nenhuma reserva quanto ao estar pronto a todas as soluções, caso não se componha a dita ameaça nuclear, vinda na escalada de confronto com o Irã.


Ronda os próximos dias o desânimo da própria Comissão da ONU em controlar a retomada dos experimentos nucleares do Governo de Teerã. Da mesma forma, o Hamas no poder cede à pressão internacional, para reconhecer a coexistência com Israel. Falharam também as previsões acomodatícias, em que os Estados da região cobriram, imediatamente, a retirada dos subsídios americanos, com as novas fartas mesadas do Emir de Qatar e da Arábia Saudita, antecipando outras ofertas do mundo islâmico.


Kofi-Annan dirigiu-se à Comissão na busca, justamente, do que possa ainda ser esse diálogo, explodido pela Al-Qaeda, apelando para o peso da visão de homens livres, de todo o globo, a ajudar no destranque das lógicas fatais de Estados soberanos, ou do que exprimissem, até, como vontades populares. Essas, exatamente, enquanto, por eleições genuinamente democráticas, traduzem um revanchismo generalizado no Oriente Médio à invasão do Iraque.


Exaspera ainda todo esse clima o recado mais grave da reação às caricaturas de Maomé. A onda mundial islâmica não resultou de uma indução de governos. Muitos deles, inclusive, como o da Líbia ou do Líbano, ficaram estupefatos pela depredação e a ida às ruas, muito para além das formas de boicote ao comércio dinamarquês. O perigo, hoje, capaz de levar à nova guerra das religiões, é esta enorme onda sublevada no inconsciente social muçulmano, a dar-se conta da expropriação histórica a que foi levado, subliminarmente, pela dita civilização ocidental, seus prodígios e suas mutações.


A terraplanagem da tecnologia arrastou a identidade das culturas em que se instalou, à troca do consumismo tão intransitivo como limitado. Estabelece-se hoje um curto circuito trágico, entre o estupor com a queda das torres e a violência da reação aos intervencionismos militares americanos.


O incidente das caricaturas já foi visto no campo mais temporizador, até do conservadorismo islâmico, como uma provocação, a dar a partida ao tão temido clash das civilizações, transformado em possível e iminente guerra das religiões. O Secretário Geral da Liga Árabe, Mohamed Massa foi incisivo diante de Kofi-Annan, ao exigir que a busca do diálogo perca todo o seu álibi retórico. Trata-se, enquanto ainda é tempo, de reconhecer um confronto, sim, com o Islão e do quanto corre-se contra o tempo para eliminar, tanto o irracional do terrorismo, quanto a arrogância do Ocidente. E isto, a partir de um desconhecimento, senão de um desprezo, pelo mundo do profeta.


Os dados do Gallup foram discutidos em Doha, mostrando que 70% da população americana não reconhece nenhum valor ou relevo nessa cultura. E desse total, a metade declara que nem sequer pretende conhecê-los. E o debate da ONU foi acompanhado de uma discussão aberta com a sociedade civil do Qatar, conduzido pela BBC, tendo por base o apoio ou não ao Hamas na Palestina. O resultado foi o dos 80% dos entrevistados, a endossarem os resultados democráticos da última eleição em favor do apoio ao novo Governo da Palestina.


Vamos, agora, à terceira rodada do diálogo, a se realizar provavelmente no Rio de Janeiro em fins de maio próximo. Doha serviu para eliminar os últimos protocolos oratórios, na repetição convencional de que um entendimento se possa dar na base da realpolitik e não nas molas profundas de uma crise identitária transformada em descarte do Islão pelo Ocidente. Não é pelas convicções de sua superioridade que o mundo hegemônico pode avançar no seu diktat, nem na confusão entre a verdadeira segurança internacional e os perigos da maquinação nuclear iraniana.


Surpresas há, de qualquer forma, a bem de uma sociedade democrática, como continua, congenitamente, a americana. E a probabilíssima abolição do Patriot Act, que super armou e desinibiu o governo Bush, pode ser o gesto daquela maioria silenciosa que venha a exprimir os democratas no Congresso, nas próximas semanas. De toda forma, o universo das liberdades se desmoraliza se o Salão Oval, em Washington, desrespeitar uma vontade política na Palestina nascida do mais impecável da regra do jogo democrático.


 


Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 17/03/2006

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro), 17/03/2006