Roland Corbisier, falecido a 10 de fevereiro último, foi o primeiro diretor do ISEB: instituto que, há quase meio século, procurou formular a ideologia do nosso nacionalismo, amarrada à vigência do desenvolvimento. Buscava o impacto mobilizador de uma efetiva tomada de consciência pelo país do seísmo em que importara, à época, a perspectiva dos ''50 em 5'' de Juscelino. Refletia o salto para a mudança, implicando a revisão de tantos mitos, desde a inevitabilidade do progresso até o da nossa condenação ao fracasso no quadro das velhas pestiferações de raça, da preguiça, ou do povo, como denunciava Monteiro Lobato, feito dos Jecas-tatus, à margem da história. O ISEB, empenhado na autoconsciência dos movimentos sociais, viria necessariamente a se chocar com as visões corporativas, ou dos atores privilegiados para o desenvolvimento, tal como das Forças Armadas, a comandar este processo, consoante os imperativos geopolíticos e estratégicos da Segurança Nacional.
No quadro inevitável da radicalização, às vésperas do movimento militar, transformou-se o ISEB no próprio símbolo das opções ideológicas que confrontou o novo regime, inclusive com o fechamento do instituto, a cassação de seus líderes, e o esquartejamento simbólico até de sua biblioteca. O primeiro diretor da casa da Rua das Palmeiras chegava ao posto, por iniciativa de um encontro de pensadores, a que Roland trazia o impulso de São Paulo, somando-o ao de Helio Jaguaribe, no Rio. O Grupo de Itatiaia, que dele resultava, mostrava, por uma vez, que o pensamento das duas metrópoles não continuava a se separar pela Serra do Mar.
Roland trazia da Paulicéia Almeida Salles, Paulo Edmur ou Ângelo Arruda, como se juntavam à Helio, Guerreiro Ramos, Rômulo de Almeida, ou Evaldo Correia Lima. Surgia o Grupo, fecundador do ISEB e de uma busca de reflexão de um Brasil para si, quebrada a visão da nossa cultura ornamental e de ingênua dependência do pensamento externo. Tanto Helio seria o aríete da proposição política para ume novo ''que fazer'' brasileiro, tanto se deve a Roland um à vontade novo na nossa filosofia, nas perguntas sem rodeios, nem subterfúgios, nem concessões à subcultura.
Roland vinha da melhor tradição do pensamento paulista, formado pelo São Bento e pela USP. A inquirição radical à flor da pele levava-o à problemática candente. Ressoava no paulista articulado e incisivo, a pergunta pelo ''ser no mundo'' heideggeriano, o repto do ''tempo eixo'' de Jaspers, que visitara com Helio Jaguaribe em Basel: a exigência sartreana da reflexão imposta a uma intelligentsia, indissociável da transformação social.
Não era outra a proposta do ISEB, a viver a tensão específica, entre manter-se a atitude crítica e aceitar-se o envolvimento ideológico, como prática social. O instituto passou por essas duas etapas constituindo-se como perigo subversivo, pelo alavancar de idéias, frente a um regime que passava a privilegiar a segurança nacional por sobre a mudança de uma estrutura arraigada do subdesenvolvimento. Roland tinha o dom raríssimo da dupla impostação: a da proposta do pensamento crítico, de par com o fraseio e o tom verbal único da sua presença.
Na clássica abertura dos cursos assegurava o rigor da problemática, sem as clássicas concessões semicoloniais à erudição ou ao anedótico. Mantinha a invectiva da boa polêmica no nervo exato de um debate fundador. Não esqueceremos a sintonia lograda com Sartre e Simone de Bouvoir no encontro, por horas a fio no Hotel Miramar, com a direção do ISEB.
O contributo maior de Roland Corbisier será, entretanto, o trato sem concessão que deu ao nacionalismo brasileiro, ou a alienação das nossas elites, no porte seminal de textos como o de ''Consciência e Nação'', ''Responsabilidade das Elites'', ''Formação e Problema da Cultura Brasileira''. A lógica do pensador exigiria o compromisso político, levado às últimas conseqüências, e ao mandato de deputado estadual, obrigatoriamente cassado pelo movimento militar. Demitido a seguir pelo governo, retornou ao filosofar implacável, com todo o donaire que lhe permitia a independência de intelectual vivendo de sua pena. Sem concessões, perseverou no magistério e no melhor remate da obra amadurecida, entregou-nos a sua Enciclopédia filosófica, de 1974.
O nonagenário que ora nos deixa enfrentou, indene da cabeça, a pertinácia da doença. A vida toda, portou-a nos grandes largos da interrogação absoluta, sabendo dar ao seu tempo os temas da crise, como a última ascese do pensamento. Responde, por aí mesmo, a toda aquela filosofia da cultura de Dilthey, ou de Scheler, que configura o refletir como uma infinita e abrangente tarefa de compreensão, a se abordar, olho no olho, na combatividade em que punha à prova a visão da elite do seu tempo, a rigidez de uma dogmática, a impermeabilidade das premissas de um ''ver-se o mundo''.
O primeiro diretor do ISEB sabia, para além do rigor do pensar ou da precisão de sua veemência analítica, pôr-se à busca do horizonte para um ''que fazer'', em que se entrama todo um novo sentido para o projeto nacional. Não é outra esta impostação que deu a Roland o tempo interior para nos interpelar, sempre, na inquietude radical em que amadurecemos como nação, irrepetível na sua aventura.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 23/02/2005