Dentre os valores de fundamental importância consagrados pela história da civilização sobressai o relativo à saúde, da qual o homem teve consciência imediata, tão frágil é ele no tocante aos males do corpo e da mente e ante as forças adversas da natureza. Travou-se desde logo uma rude e contínua batalha entre os valores vitais e os fatores negativos que determinam a morte, aqueles empenhados em preservar e salvaguardar a existência humana e estes, tendentes a extingui-la, pondo termo a um projeto existencial.
É claro que nessa luta, que se perde na noite dos tempos, o homem recorreu primeiro aos deuses, através de múltiplos processos, desde as mais elementares formas de feitiçaria até atos pios de contrição e de confiança, sem prejuízo de tentar debelar a doença mediante elementares processos empíricos que uma geração legava a outra, compondo conhecimentos inspirados na experiência.
A história da luta pela saúde confunde-se, pois, com a história mesma do homem, surgindo a medicina como a ciência germinal, cujas conquistas, hoje em dia, nos assombram.
É nesse cenário que se situam os hospitais, as "casas de saúde" que assinalam distintos e sempre crescentes momentos de processo civilizador.
Essas idéias vieram-me à cabeça nos últimos 20 dias passados no grande Hospital Albert Einstein, confiado à sabedoria e à dedicação de médicos que tudo fizeram para que eu pudesse voltar à vida normal, a meus estudos e afazeres cotidianos.
Foi então que me dei plenamente conta dos liames entre a medicina e a civilização desde os primeiros passos do ser humano sobre a face da Terra, constituindo ela a ciência originária da qual derivaram todas as outras de base experiencial.
Quantos requisitos são indispensáveis à profissão de médico, a começar pela aceitação de um desafio acabrunhante entre a vida e a morte!
Quanto saber e quanta experiência são necessários pelo acerto de um diagnóstico, ponto essencial de partida para a recuperação da saúde!
É por isso que me preocupa a apressada criação de Faculdades de Medicina, desprovidas de laboratórios e de biblioteca especializada, com a função docente confiada a mestres de reduzido saber e experiência.
Se há um curso universitário que requer cuidados e exigências especiais, é esse da formação do médico, que não se pode especializar apressadamente neste ou naquele ramo profissional sem antes ter forrado sua cultura com os ensinamentos de anatomia e demais ciências que constituem as bases biomédicas.
Infelizmente, no plano educacional em geral, e especialmente no universitário, estamos tomados pela expansão numérica dos quadros de ensino, esquecendo-nos da proficiência dos professores e do real preparo do estudante para a compreensão e assimilação de conhecimentos científicos e técnicos.
Dir-se-á que a aparelhagem mais avançada de que hoje dispõe a medicina suprirá as deficiências culturais, mas há nesse raciocínio um erro palmar, porque no centro de toda a problemática da saúde está a pessoa do médico em condições de aplicar seus conhecimentos e diagnosticar o mal de quem o procura.
Alegar-se-á, repito, que as colossais conquistas atuais da medicina, fruto de pacientes e atiladas perícias de laboratórios, de especializados seminários e de aulas de verdadeira sapiência, vieram facilitar a atuação dos que atuam na área da saúde, valendo-se de aparelhagem cada vez mais sofisticada, mas todo esse contorno técnico-científico não suprime as sábias auscultações do funcionamento dos órgãos do paciente, que requerem sutil capacidade cognoscitiva, resultante da maturidade profissional.
Nem seria necessário lembrar que, nos casos mais graves, a decisão de internação do doente num hospital é de capital relevância para sua recuperação.
Suspenso de suas habituais atividades, torna-se o doente "objeto" de constantes visitação e assistência, não podendo contrapor sua vontade às decisões do médico e de seus colaboradores.
É então que se compreende a missão dos hospitais, munidos dos mais modernos instrumentos de informação técnica, e contando com enfermeiros experientes, que criteriosamente executam as ordens recebidas, sem esquecer os auxiliares de enfermagem que se identificam com os doentes, cujas exigências compreendem e justificam.
Quatro colunas sustentam a entidade hospitalar, desde o seu corpo clínico até o mais humilde de seus colaboradores; desde os serviços administrativos que operam com previsão e eficiência até a aparelhagem técnica que penetra nos mistérios de nossos males, representando o resultado acumulado de indagações que se situam na vanguarda das realizações culturais.
Compreende-se, assim, a razão pela qual a Constituição de 1988 dedica todo um capítulo minucioso ao problema da saúde, visando a garantir a todos o rápido acesso universal e igualitário às fontes e serviços que surgem em prol dos valores essenciais da vida. O ideal constitucional é um Sistema Único de Saúde (SUS), financiado por recursos oficiais e privados.
Seus fins são de tal natureza que quaisquer desvios para atender não raro a interesses pessoais ou secundários constituem lesão enorme, pela qual deviam responder criminalmente os administradores encarregados da área da saúde.
Para que as altas finalidades desta possam ser alcançadas é indispensável que o Estado, nas suas três ordens de poder, federal, estadual e municipal, tudo faça para evitar as crises hospitalares, bem como auxiliar o insubstituível encontro pessoal dos médicos com os doentes, com plano para redução do preço dos remédios.
Nem fica por último o zelo pelas pesquisas científicas e tecnológicas, cujo desenvolvimento assinala o grau do progresso real de um povo.
Nesse ponto há muito que fazer no Brasil, apesar de já termos demonstrado, em vários setores, a capacidade intelectual e inventiva de nossa gente.
Trata-se de uma obra que se distingue pela imaginação criadora e pelo amor aos indivíduos e à coletividade.
Não devemos, em verdade, jamais esquecer o sábio ensinamento de Jackson de Figueiredo de que a vida humana é a única oportunidade que temos de aperfeiçoar-nos. Com tal advertência, compreendemos o que médicos e hospitais representam no decurso da História, cooperando para a continuidade de projetos existenciais.
O Estado de São Paulo (São Paulo) 19/06/2004